com fito e mote registrar a natureza do Rio de Janeiro como autêntica "cidade literária" -- ao mesmo tempo referenciar e reverenciar a cidade em seus 450 anos de existência.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

de Arthur Azevedo, 2 contos primorosos

Os charutos

No último sábado tive a satisfação de encontrar a minha espirituosa amiga dona Henriqueta na rua dos Ourives, quando ia entrar em casa do Chappot Prevost, que tem a honra de ser o seu dentista.
- Ainda bem que  o encontro. Suba. Preciso falar-lhe.
Subimos.
O Chapot Prevost estava, como sempre, ocupado, e a minha espirituosa amiga teve que esperar na elegante saleta do mais amável dos nossos cirurgiões dentistas.
--Tenho aqui na ponta da língua uma história para os seus leitores.
- Sim?
- Ah! mas é preciso escrevê-la com muito cuidado. Foi uma amiga minha que me contou. Não creio que seja inédita, mas é engraçada.
- Ouçamos.
E dona Henriqueta contou-me a história que vou reproduzir. Enquanto contava, ria-se a perder, mostrando uns dentes belíssimos, que não justificavam absolutamente a sua presença na casa do Chapot Prevost. Não sei porquê, em geral, as senhoras que vão aos dentistas têm muito bonitos dentes.
Vamos ao conto. Se algum dos leitores já o conhecer, tanto pior para mim.                                                                                        
*
Foi um dia de verdadeiro júbilo em casa do barão e da baronesa de Cajapió, nas Laranjeiras, aquele belo domingo em que o doutor Salles Borba lhes pediu a Isabelinha em casamento.
As três filhas mais velhas estavam casadas, e muito bem casadas. A Isabelinha era a última, e o doutor Salles Borba,·engenheiro distinto, muito novo ainda, bem educado, viajado, bonito, elegante e quase rico, era um partido como não se encontram muitos.
A Isabelinha aceitara o noivo com entusiasmo; não que o amasse, porque, educada nos mais severos princípios, não tinha ainda prestado atenção a nenhum homem; reconhecia, entretanto, naquele belo moço -- tão correto nas maneiras como nas vestimentas -- alguma coisa que o tornava superior à maior parte dos indivíduos que ela encontrava nas salas aonde os pais a conduziam com a mal disfarçada. intenção de lhe procurar marido .
*
O casamento realizou-se com toda a pompa.
A pedido da baronesa, o doutor Salles Borba e sua esposa ficaram morando no palacete das Laranjeiras, que tinha acomodações para abrigar à vontade duas numerosas famílias.
*
Quando o último convidado se retirou, e os noivos entraram na misteriosa alcova, que docemente lhes sorria entre sedas azuis e rendas brancas, o doutor Salles Borba tirou da algibeira um magnífico havano, acendeu-o na vela cor de rosa que ardia num esplêndido castiçal de ouro, e pôs-se a fumar.
A Isabelinha empalideceu de despeito. Pois que ! ele, o seu noivo, fumava dentro da alcova nupcial, na própria noite do casamento ! ...
Aquele charuto inoportuno pareceu-lhe -- e com razão, digamos -- uma brutalidade inverossímel, uma grosseria imperdoável.
Na realidade não se compreende que um cavalheiro da estofa do doutor Salles Borba tão viciado estivesse, Deus meu ! que não sacrificasse o seu charuto à a mais elementar  cortesia.
Acresce que, instruído como era, naturalmente havia lido a Fisiologia do casamento, e devia saber que o autor meteu os fumantes no rol dos “predestinados”. É verdade que isso apenas prova que Balzac... não fumava .
*
Mas não percamos de vista os nossos noivos.
Os leitores, e principalmente as leitoras, vão ficar  indignados ao saber que o doutor Salles Borba levava ainda o maldito charuto entre os dentes, quando se dirigiu para o tálamo, onde o  esperava a Isabelinha trêmula e palpitante -- e com o charuto entre os dentes, fumegante e rubro, se deitou ao lado da melindrosa donzela, que não se pôde conter :
- Tenho que lhe pedir um grande favor, meu  amigo.
- Tens que me dar uma ordem, meu amor.
- Abstenha-se de fumar no nosso quarto, sim?
- Por quê? Incomoda-te o meu charuto?
- Não, não me incomoda, mas ... não gosto, não acho bonito ...
O engenheiro não respondeu; teve apenas um ah muito seco, pôs o  havano de lado... e daí  a alguns minutos dormia profundamente .
*

E durante três noites, naquele ninho, não dirigiu a palavra a Isabelinha. Fora dali, de dia, na sala, no gabinete, no jardim, à mesa do almoço ou do jantar, era de uma amabilidade, de uma solicitude sem limites; mas à noite, no leito, esperava que sua mulher se deitasse, deitava-se ao lado dela, fechava os olhos, adormecia, e só despertava no dia seguinte, quando o sol entrava timidamente na alcova.
Na quarta noite a Isabelinha interpelou-o :
- Borges, por que você aqui no quarto não conversa comigo ? ! 
Ele sorriu :
- Ah! Isso ...
E acrescentou com resolução :
- Ouve ; talvez não acredites, mas é a pura verdade : à noite, quando estou deitado, não me é possível conversar sem primeiramente fumar um charuto.
Ela mordeu os beiços e não disse mais nada.
Adormeceram ambos.
*
No dia seguinte, pela manhã, Isabelinha foi ter com a mãe e tudo lhe contou.
- Que estás dizendo,. minha filha? exclamou a baronesa.
E, dando-lhe uma nota de cem mil réis, acrescentou:
-- Aqui tens dinheiro : manda imediatamente comprar uma caixa de charutos para teu marido, e o  mesmo portador que traga duas para teu pai, que há  muito tempo emudeceu.
*
Dona Henriqueta, quando acabou de me contar essa história, pediu-me que a esperasse para acompanhá-la ao ponto dos bondes no largo da Carioca.
Esperei pacientemente que o Chapot Prevost lhe examinasse as pérolas (porque, creiam, os seus dentes são verdadeiras pérolas) e, acabado o exame, tive o prazer de levá-la até o  bonde.
Já ela estava sentada quando de repente :
- Ah !  e eu que me esqueci completamente...
- De quê ? .
- E note-se que não vim à  cidade para outra coisa ! - Meu marido faz anos hoje, e não lhe devo um presente !
- Ainda há tempo.
- Qual !  já é  tarde e  chove tanto...Se eu pudesse arranjar alguma coisa aqui mesmo no largo da Carioca ...
- Pode, por que não? Seu marido não fuma? Está ali a charutaria do Machado, que ...
A minha espirituosa amiga deu um muxoxo e voltou o rosto para sorrir à  vontade.
O bonde partiu.
                                                              _____________________ 
..
O doido

Não  havia dúvida : o pobre Canuto estava  completamente doido.
A princípio foram uns acessos profundos de melancolia , um desejo de andar metido pelos cantos, com a cara para o lado da parede como se o mundo não lhe importasse para mais nada, contemplando as unhas, sorrindo.
Vieram depois os monólogos, os longos monólogos incoerentes, em que ele não dizia coisa com coisa -- até que um dia ficou furioso, quebrou pratos e garrafas, escangalhou um velho relógio de armário, e, descendo ao terreiro da fazenda, espancou um moleque, matou algumas galinhas, e espojou-se no chão, às gargalhadas !
A família fechou-se toda num quarto, aos gritos.  Foram os pretos que subjugaram o doido e conseguiram metê-lo num pardieiro arruinado, que havia sido senzala noutro tempo, e amarrá-lo solidamente a uma viga.
*
Imagine-se a aflição do pobre Miranda, o velho fazendeiro ,com o filho doido - um querido, rapaz inteligentíssimo, que concluíra terceiro ano de direito em São Paulo e estava passando as férias na fazenda do pai.
E a mãe, aquela excelente senhora, carinhosa  como todas as roceiras, ferida assim na fibra mais delicada do seu coração  de mulher simples?
E as duas irmãs, uma das quais, a Maricas ,  era noiva do Meireles, um moço que tinha loja na  vila, quatro léguas distante da fazenda ?
*
A fúria do mísero Canuto pôs tudo em rebuliço.  Depois de algemado o louco, Miranda, com cabeça perdida, mandou que o seu pajem de mais confiança – o  Miudinho, selasse o seu cavalo também de mais confiança – o Furta- moças --  e fosse à  vila, a todo galope, chamar o médico.
Quando este veio, encontrou o doente prostrado entre duas pretas velhas que o benziam, resmungando rezas e fazendo bruxedos e feitiçarias. A grande·crise passara.
O  médico era um verdadeiro médico da roça .
- Homem, seu Miranda, confessou ele, não se trata da minha especialidade; e a primeira vez que na minha clínica aparece um caso de loucura. Eu podia receitar alguma coisa, mas, creia, sem ter muita confiança no que fazia ... Mande quanto antes o seu rapaz para o Rio de Janeiro, e meta-o no hospício ou nalguma casa de saúde. O  acesso pode voltar de um momento para outro, e talvez tenhamos que lamentar alguma desgraça. Com doidos não se brinca !
                                                                 *
À tarde apareceu na fazenda o Meireiles, o lojista, o noivo da Maricas. O Miudinho, de passagem para a  casa do médico, dera-lhe notícia do fato. O  moço mostrava muita solicitude, muito interesse.
Era um rapaz de vinte e cinco anos, baixinho, de feições microscópicas e uns olhos, uns grandes  olhos muito abertos que pareciam ocupar o rosto inteiro. Falava pelos cotovelos, desejoso de se mostrar entendido em todos os assuntos  -- e agora, discutia casos de loucura e aprovava o conselho do médico.
--  Mas quem há de levá-lo  ao Rio de Janeiro ? perguntou o fazendeiro.
--- Eu ! disse logo muito depressa o Meireles. Deixe-o comigo .
O lojista cuidou desde logo de captar a confiança do doido, que tinha momentos perfeitamente lúcidos. Conversaram durante uma hora. Canuto deixou-se convencer de que estava doente e devia dar um passeio à Capital Federal para tratar-se .
A mãe quis opor-se a essa viagem, as irmãs choraram muito e o velho Miranda sentiu-se fraquear  entre aquelas explosões de lágrimas.
Mas era preciso levá-lo  dali. Esse era o único meio de curá-lo , e evitar uma desgraça maior.
*
Dois dias depois, Canuto entrou no trem de ferro em companhia do seu futuro cunhado. Chegaram à  noite na Capital Federal, depois de uma viagem sem incidentes, durante a qual o doido apenas se mostrou taciturno. Ninguém perceberia o seu estado mental, se o Meireles, morto por dar à  língua, não contasse aos outros passageiros a história do pobre moço.
Veio recebê-los  na plataforma da estação um caixeiro do comendador Barbosa, correspondente do velho Miranda, que providenciara pelo correio e pelo telégrafo.
-- Se quiser, disse o caixeiro ao Meireles, daqui mesmo pode seguir para a casa de saúde e lá deixar o doente. Está tudo preparado para recebê-lo.
E depois de indicar  o estabelecimento, cujo diretor se achava prevenido, acrescentou :
-- Basta dizer-lhe que vai da parte do comendador Barbosa.
O Meirelles receou por instantes que Canuto houvesse prestado atenção às palavras do caixeiro, e recusasse acompanhá-lo ; mas o seu olhar de doido era tão inexpressivo, tão morto, que tais receios logo se desfizeram.
Efetivamente, quando o Meirelles o convidou a entrar num carro estacionado na praç;a da República, o bacharel não fez a menor objeção, e deixou-se levar.
*
Chegados que foram à casa de saúde, Canuto desceu do carro e embarafustou resolutamente pelo corredor, antes que o Meireles lhe disse uma palavra.
A primeira pessoa. que o doido encontrou -- numa sala aonde se dirigiu --  foi o próprio diretor do estabelecimento. Cumprimentou-o com muita amabilidade, e disse-lhe :
-- Sr. doutor, trago a vossa senhoria o  maluco de quem lhe falou o sr. comendador Barbosa. E apontou para o Meireles que por seu turno entrava na sala, com os grandes olhos exageradamente abertos.
-- Bem ! já estou prevenido, disse  o diretor.
-- A mania dele, acrescentou Canuto ao ouvido do médico, é dizer que está no seu juízo, e  que o doido sou eu. Aí fica o pobre rapaz aos cuidados de vossa senhoria.
Dizendo isto, disfarçou e saiu para a rua.
-- Bom, meu amigo, disse o diretor, batendo carinhosamente no ombro do Meireles ; vamos para dentro. Vou dar-lhe um quartinho muito bom para descansar .
O Meireles sorriu :
-- Perdão, doutor, eu não preciso descansar.
-- Há de precisar, há de  precisar; chegou de viagem, deve estar fatigado.
-- Não, senhor, tanto que tenciono ir esta noite ao teatro; dormirei no hotel e voltarei para a roça  amanhã, no trem da madrugada. Vim simplesmente entregar.lhe o doido de quem lhe falou o comendador Barbosa.
-- Pois sim, pois sim, deixe lá o  doido ... já sei, já sei ... O senhor fica nesta casa alguns dias e depois volta para a fazenda de seu pai....
-- Ora esta ! pelo que vejo, o doutor está me confundindo com o doido ! ...
-- Não, não estou, creia que não estou ... Venha, venha comigo ....
-- Ora que brincadeira sem graça ! Onde está o Canuto ?
-- Deixe lá o Canuto ! Vamos ... venha para o seu quarto...
-- Já lhe disse, doutor, que está enganado ! Eu não sou o doido ! O doido é o outro !
E cada vez o Meireles arregalava mais aqueles olhos inverossímeis.
Depois de dizer, cheio de calma : - Bom ! é teimoso ... – o  diretor calcou um botão elétrico.
-- Que faz?
--  Vai ver.
Entraram dois enfermeiros, dois latagões  musculosos.
-- Leve este doente para o quarto número 7.
-- Mas...
-- Levem-no ! Se protestar, metam-lhe a camisola de força.
Daí a cinco minutos  o Meireles estava no quarto e com a tal camisola, porque caiu na asneira de protestar.
Quatro dias passou o pobre diabo na casa de saúde, onde chegou a tomar três duchas geladas.
Foi preciso que Canuto aparecesse na fazenda, e que o velho Miranda adivinhasse tudo e telegrafasse ao comendador Barbosa, pedindo-lhe para desmanchar o engano .
*
Canuto está hoje completamente restabelecido e formado. Advoga, mas não serei eu quem lhe confie alguma causa



segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A mulher brasileira é escravocrata ?, de Aluisio Azevedo

A mulher brasileira é escravocrata ?

-- Muito !
Ninguém o é tanto, nem tão cegamente.
E, como poderia deixar de ser assim, se a mulher brasileira caminha com sessenta anos de atraso ? Se, enquanto navegamos em 1884, armados de escapelos, munidos de ciência, medindo os nossos gostos, as nossas simpatias pela bitola de uma educação positiva e moderna;  ela a mulher, a que devia ir adiante com as criancinhas pela mão, a explicar o que é  ar, o azul do céu, a classificar as flores e as folhas que os filhos fossem arrancando no caminho para brincar, ela, que devia saber tudo, como educadora, como mestra; ela, coitada, arrasta-se ainda nas brumas do romantismo , crê  no diabo, tem mau agouro com o arrulhar dos pombos, empalidece defronte de um pouco de azeite entornado, e em vez de responder pelos seus atos, lança tudo à conta da “ Fatalidade”.
Antes de cometer qualquer coisa, não procura estudar e dirigir as circunstâncias que tenham porventura de produzir a grande calamidade de sua vida; não ! dizem simplesmente : -- Será o que Deus quiser !
E deixam correr o marfim.
Depois do caso verificado; quando todas conseqüências começam de lhe cair sobre a bela cabecinha pecadora, então elas voltam os formosos olhos para o céu, suspiram e dizem :
-- Ora ! É porque mesmo já tinha de suceder ! Fez-se a vontade de Deus !

Todavia, esta irresponsabilidade é de 1820 e não de nossos dias. A mulher de nossos dias é a única responsável pelos seus atos, é a única que dirige a sua existência, a que defende a sua virtude e a que determina do destino bom ou mau da geração que a secunda.
Os homens serão obra sua, a sociedade será o reflexo do que elas pensaram, do que elas sentiram, do muito que amaram e que sofreram.
Pois bem, a mulher enquanto não chega a compreender essa verdade há de fatalmente escravocrata !
Há de ser escravocrata, porque é supersticiosa, romântica, irresponsável de seus atos e ignorante dos seus deveres mais comezinhos.
Conheci na província muita senhora honesta quanto às suas atribuições de esposa, muito boas e generosas, quanto ao seu modo de praticar com os parentes e amigos, mas verdadeiramente perversas quanto aos escravos.
É que faziam uma idéia falsa do que fossem essas criaturas negras, que um acaso terrível lhes atirara aos pés, como feras domesticadas. Metiam-lhes o chicote naturalmente, como se metendo o chicote cumprissem um destino decretado pelos céus.
-- Quando Deus os fez negros não foi por boa coisa !...
É uma praga que a senhora do norte repete a todo o instante.

Uma senhora conheci, muito velha, muito devota, que saía todas as manhãs para a igreja, deixando um escravo no castigo com ordem para não o parar enquanto ela não voltasse. Outra me consta que mandou arrancar os dentes de uma escrava porque o marido uma ocasião tivera a imprudência de dizer que a infeliz tinha uns dentes admiráveis. Outra, apesar de muito boa e honesta mulher, sei que à noite, saudosa do marido e caindo de tédio, chamava para junto de sua rede uma escrava e exigia que esta contasse histórias engraçadas : quando a história não tinha a graça desejada, metia-lhe o vergalho.Imagine-se os apuros da pobre escrava !
Mas em minha própria família, como em toda família maranhense, constituída nos últimos oitenta anos, as cenas de rigor com os negros são tão comuns que chegam a entrar nos hábitos da existência.
Lembro-me ainda ter visto, em pequeno, e quantas vezes ! dois ou três escravos na surra. Era vergonhoso : castigavam-se mutuamente, iam passando os bolos e as chicotadas como se estivessem a fazer um jogo, uma patuscada para se divertirem.

Felizmente tudo isso hoje está modificado ! Ainda me recordo, porém, de uma preta velha, talvez de sessenta anos nessa época, avó, boa de coração e pura de costumes como poucas mulheres tenho visto em todas as classes sociais. Era uma criatura inocente, da roça, quase que não sabia falar e andava sempre triste, consumida pelas saudades de seus filhos e de seus netos. Apesar da idade, dispunha da força de um homem e tinha o corpo em pleno vigor.
A senhora dessa avó, como não lhe podia arrancar o serviço de roça, visto estar na cidade, dava-lhe um tabuleiro cheio de frutas e ordenava à boa mulher que as fosse vender pelas ruas. A preta saía de manhã e voltava à noite, depois de percorrer toda a pequena cidade de S. Luis do Maranhão.
Mas, infeliz dela se não tivesse  conseguido vender todas as frutas, porque a senhora, uma senhora de muito boa sociedade e tida na província como um dos melhores corações, a senhora chamava um escravo dos mais possantes e ordenava-lhe que aplicasse meio grosa de palmatoadas à pobre velha.
Foi tão grande a impressão que recebi nesse momento que ainda tenho defronte dos olhos o vulto venerando da escrava estendendo ora uma ora a outra mão para receber a pancada. Vejo ainda a sua cabeça vergada, um pouco oprimida pelo hábito de carregar o tabuleiro, o cabelo encarapinhado e branco. Vejo correrem-lhe dos olhos as lágrimas silenciosas dos mártires e ouço-lhe os gemidos lentos, arrastados, como deviam ser os de Cristo ao galgar o rastro do Calvário.
Já não existes, pobre criatura de cabelos brancos, pobre mãe de mães, vieste e saíste deste mundo amarrada sempre ao cativeiro !
Entretanto, aquelas mãos talhadas para as bênçãos nunca se ergueram para amaldiçoar os seus verdugos !
Pobre santa !
                                                                          

















sexta-feira, 31 de julho de 2015

Filomena Borges , de Aluisio Azevedo


I
Sabemos que é geral a ansiedade por descobrir o mistério em que se envolve a individualidade conhecida pelo nome que encima estas linhas.
De há alguns dias conhecíamos parte do romance – se romance podemos chamar a uma história tristemente verdadeira – de que é heroína, protagonista, vítima, e não sabemos que mais, aquela mulher que é hoje célebre por andar o seu nome por toda esta população, repetido de boca em boca.
E sabíamos da sua história, porque nô-la referira a pessoa que assina a carta que abaixo transcrevemos, e que, tendo dela ligeira notícia, dirigira-se pessoalmente a tomar informações, e voltara trazendo-as, e as mais preciosas.
Encetaremos, pois, brevemente, a história da vida de Filomena Borges, escrita pelo conhecido romancista Aluízio Azevedo.
Eis a carta que ele nos enviou:
“Sr. Redator da Gazeta de Notícias. – Não é uma questão de interesse próprio que me traz ao seu conceituado jornal. Também não venho tratar de política, nem de ciência nem de literatura. Não.
Meu fim único, dirigindo-me a V. S., é cumprir um dever de consciência, um dever de justiça.
Neste instante, Sr. Redator, acabo de chegar da casa de Filomena Borges, e é ainda dominado por uma impressão violenta que lhe escrevo estas linhas.
Nunca imaginei que o ódio, a intriga e a inveja conseguissem tanto! Nunca me persuadi de que o espírito do mal fosse tão longe!
Bem sei que Filomena não é um modelo de virtudes domésticas; bem sei que na febre de suas paixões mais de um futuro se tem estiolado; bem sei que muito coração ainda hoje sangra a ferida de seus ósculos vermelhos.
Mas será ela porventura a maior culpada de tudo isso, será ela a única responsável pelo mal que fez e pelas fortunas que destruiu?!
Não caberá alguma parte dessa culpa a nossa sociedade, aos nossos costumes, à nossa educação, e finalmente ao triste meio onde cresceu e palpitou essa desventurada e formosa criatura?!
As mulheres são fatalmente aquilo que os homens decretam que elas sejam.
Filomena Borges é um produto legítimo dos vícios e da covardia de seus pais.
Se não a educassem no falso luxo; se não lhe ensinassem todas as misérias de uma pobreza sem coragem e sem dignidade; se não a vendessem ao primeiro noivo rico e brutal que a desejou: Filomena Borges seria talvez neste instante o melhor modelo das mães de família.
Eu também a detestava; eu também a temia. Não foi sem escrúpulo que cheguei ao lado dela. Mas. depois que a encarei de perto; depois que lhe sondei todos os arrebatamentos da alma apaixonada; depois que a ouvi nesses momentos terríveis da desgraça em que se não pode fingir, ah! então compreendi que, melhor do que o desprezo, merecia a infeliz, compaixão e consolo.
Hoje ninguém ignora o que há a respeito dessa pobre criatura desamparada; todos sabem a perseguição de que ela é vítima, e toda a grande tempestade de cólera que lhe paira sobre a cabeça.
Formaram-se grupos, inventaram-se clubes para a perseguir. Homens poderosos e mulheres felizes pedem o seu quinhão de vingança, como esfomeados que exigem pão. Multiplicam-se as cartas, os artigos., os cartões postais, os ditos maldizentes, as pequenas conversas intrigantes; e, todavia, Filomena Borges, a temível, a medonha Filomena, chora e pede por amor de i)eus que não a condenem sem a ter ouvido.
Ainda ontem um cidadão, cujo nome abstenho-me por ora de citar, chegou a quebrar-lhe os vidros da janela, depois de me dirigir da rua os maiores insultos. Um capitão do exército jurou que lhe havia de meter uma bala no miolos, se ela não tratasse quanto antes de sair do Rio de Janeiro. A Sra. baronesa X… mãe de três rapazes, e em vésperas de ser avó, remeteu-lhe unia carta, que faria temer um oficial de artilharia.
E, no fim de contas, qual é o motivo de tanta guerra?! De que lado esta a razão?!
Isso só o público decidirá, depois de ler o apanhado de todos os fatos, o extrato de todos os documentos, que me foi permitido descobrir a respeito de Filomena Borges.
Não hei de inventar, nem esconder cousa alguma; a verdade aparecerá nua e limpa, ainda que tenha de arcar com o ressentimento de algumas pessoas.
Rio, 4 de outubro.
Aluízio Azevedo (O Paiz, outubro de 1883).
II
Antes de principiar
– Leste Filomena Borges!
– Li.
– Que tal?
– Uhm! Assim!…
– Por quê?
– Pouco enredo… pouca forma… e, com franqueza, achei tudo aquilo falso.
– Falso? Não! Isso tem paciência’. Tudo aquilo é vasado na observação e na verdade!
– Talvez seja por isso mesmo! Nesse caso há excesso de fidelidade e a cousa parece falsa. Às vezes um retrato a óleo é mais verdadeiro do que uma fotografia.
– Ora essa!.
– Parece-te unia asneira o que acabas de ouvir, mas não é, acredita! Nada é tão inverossímil como a própria verdade, quando ela se apresenta com toda a brutalidade de seu peso.
– Estás metafísico, homem!
– Não sei se estou metafísico, o que te afianço, é que não gostei da tal Filomena Borges, tão apregoada, tão ansiosamente esperada. Confesso, achei-a fraca, desengraçada, inútil. Pode ser, se o romance não fosse tão anunciado, que eu achasse bom, porém puxaram tanto pela minha curiosidade, tanto mexeram comigo, que, palavra de honra, esperava outra cousa.
– Ora! Isso não é crítica!
– Mas que queres, filho… Tenho eu culpa que a tal Filomena, uma mulher que leva o seu histerismo à loucura, não me haja agradado?! Tenho eu culpa de não poder suportar o tal Borges com a sua ingenuidade pulha?… O Guterres, com a sua má língua; o Barroso, sempre feliz em público e desgraçado consigo mesmo? Sou o responsável por não acreditar naquela viúva Perdigão, naquele Barradinhas, naquele Urso?!… Não! Tem paciência! Mas o tal Aluízio pode limpar as mãos à parede! – O seu novo romance é um atentado contra a verdade!
– Ora, deixa-te disso! Tu mesmo, na tua vida, atravessaste já algumas das situações que se encontram em Filomena Borges; tu mesmo já passaste por muitos daqueles transes; não negues! Bem sabes que eu conheço a tua vida tanto como a minha!…
– De acordo! Convenho que aí esteja descrita muita cousa que se tenha dado comigo. Mas será isso uma razão para gostar do livro… Não me parece que seja!… Eu quero que um livro me faça rir ou chorar, não há dúvida; mas, com os diabos! quero que ele me faça rir com os ridículos alheios, e chorar com as dores que não são minhas! Quero chorar para me divertir, e não para sofrer, percebes tu?
– Mas, filho, olha que estás a cair em contradição, porque, se todos pensarem como tu pensas, não haverá meio de fazer um romance real!
– Sim; mas é que há umas tantas verdades que estão conosco, em nossa inteligência, e que, todavia não existem na vida de ninguém; por exemplo…
– Não! não cites! Já vejo que não chegaremos a um acordo; quanto mais citares, é pior!
Eu, por mim, digo-te ingenuamente: não desgostei de Filomena Borges. Achei-a fora do comum, despretensiosa e divertida.

– São opiniões! Eu não lhe descobri nenhuma dessas qualidades! Não sei qual seja o fundo filosófico daquela obra, não sei o que ela prove, o que ela afirme!

– Nem eu, mas fico satisfeito em saber que ela divertiu, que ela me prendeu a atenção por muitos dias! E, digo-te agora: certas cenas que encontrei ali, fizeram-me pensar… Acredito que em tudo aquilo há uma intenção muito acentuada, há a intenção de…

– É inútil continuares! Já sei do que me vais falar, e a esse respeito temos conversado!

– O que eu vejo, é que é muito difícil escrever romances no Brasil!… O pobre escritor tem a lutar com dois terríveis elementos – o público e o crítico. O público que sustenta a obra e o crítico que a julga e às vezes a inutiliza; o público que compra um livro para aprender, e o crítico que exige que o livro sustente as suas idéias e pense justamente com ele – crítico.

– E daí?

Daí é que tudo isso seria muito razoável, se o público caminhasse ao lado do crítico; mas assim não sucede – aquele navega ainda no romantismo de 1820, e este não admite literatura que não esteja sujeita às regras de 1883. A dificuldade está em agradar a ambos, ou, ao menos, não desagradar totalmente a nenhum dos dois. Isso, quero crer, é a grande preocupação de Filomena Borges. Ela tanto pertence ao público como pertence ao crítico.

Será este o diálogo que se travará depois do último folhetim de Filomena Borges?

Pode ser. Em todo o caso, a obra principiará a sair de amanhã em diante no rodapé desta folha, e o leitor que a julgue à vontade, que diga o que entender, que a condene ou que a proteja, porque eu cá tenho as minhas razões para não a ter feito melhor nem pior.

Boa ou má, esta é a única Filomena Borges, legítima, verdadeira, a Filomena Borges da “Gazeta de Notícias”, aquela que mandou o seu cartão a vários cavalheiros desta cidade e aquela de quem até hoje se tem ocupado a nossa imprensa e o nosso público.

Sirva isso de resposta às cartas dos Srs. A. P. Ramos de Almeida, Niemeyer, L…., O. Borges, P. de Oliveira e tantos outros que me honraram com as suas letras; como igualmente sirva de réplica ao Sr. Júlio Alberto Machado, que não teve o menor escrúpulo em aproveitar aquele nome para título de um romance de sua folha, e, outrossim, ao velhaco que publicou há pouco tempo um detestável fascículo intitulado: Filomena Borges, a mulher demônio.

O público que evite as contrafações e desconfie das Filomenas que não trouxerem o seguinte carimbo:



segunda-feira, 23 de março de 2015

Singularidades de essência literária carioca


 Memórias de um sargento de milícias  : origem do malandro brasileiro
                                                                             ____________________      

Já foi vaticinado – e a meu juízo, com bastante fundamento – que Memórias de um sargento de milícias , primeiramente veiculado  em folhetins no Correio Mercantil entre junho 1852  e   julho 1853,  publicado em livro em 1854 (1º. volume)  e  1865( 2º. volume), é ‘o mais carioca dos romances brasileiros’ :não diz-se de todos os tempos,mas dos Oitocentos e do Romantismo  digo que é ( abalizadas análises projetam a obra de  Manuel Antonio de Almeida  na verdade como um antecipador do Realismo)

Sem dúvidas, Memórias de um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida  podem ser vistos, a obra e o autor,  como um pólo gerador de eixos de ilações e recorrências com as algumas  obras e autores tanto de um  como do outro ciclo historiográfico da literatura brasileira. Antonio de Almeida e sua obra são efetivamente   emblemáticos  de uma inflexão temática, tramática e estilística no romantismo literário brasileiro, e em sua característica de  antecipação  do Realismo, simplesmente prenuncia Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis – obra inovadora,  marco da inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário brasileiro. ( Antonio de Almeida e Machado, como se sabe, mantiveram excelente relacionamento e marcantes  afinidades  profissionais, a par de  ilações literárias: Almeida foi chefe de Machado na oficina da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de tipografia,  introduziu-o  na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de Paula Brito, foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado, inclusive,dedicou a ele o importantíssimo artigo “O jornal e o livro”, publicado em janeiro 1859 no Correio Mercantil ).
.
Memórias de um sargento de milícias :-‘anárquica’, ‘picaresca’, segundo Mario de Andrade, tem no protagonista Leonardo Filho antes de ser um ‘pícaro’, ‘thorminiano’ (de Lazarillo de Thormes),  o primeiro malandro da literatura brasileira, conforme Antonio Candido em seu primoroso ensaio “Dialética da malandragem”..
       
Memórias de um sargento de milícias. é antes de tudo, um romance social – daí os laços premonitórios com o Realismo; mas é também uma história do amor, no pleno estilo (e ‘dialética’)  do Romantismo, de Leonardo Filho por Luisinha,  retratando uma família – só que personalizando em Leonardo, um anti-patriota objeto da repressão de uma sociedade forte,preocupada com a ordem pública,  uma contraposição,  confrontante, com a ordem estabelecida, com o status institucionalizado, com a ordem  social, com o país: hilariante sátira sócio-política,  representa, expressa, emblematiza  metáforas sobre o destino do Brasil  como Nação;  Antônio de Almeida, guardadas as devidas proporções, mantém em  comum com os seqüentes autores realistas a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade, haja vista a essência do  universo dos personagens da obra– empregados, subempregados, desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados.
                                            ........................................

O texto original do escrito de Manuel Antonio de Almeida veiculado  em folhetins no Correio Mercantil, na seção “Pacotilha”, especificamente de caráter humorístico e satírico, distinto do escopo geral do jornal , entre junho 1852  e   julho 1853, apresenta variações e notórias diferenças  com o texto, dado como ‘oficial’, publicado em livro em 1854 (1º. volume)  e  1865( 2º. volume), pela tipografia do Correio Mercantil : as edições em livro  sucederam-se ao longo  século XIX – e incorrem numa lamentável história de  graves incorreções de texto .
2ª.ed Tipografia do Comércio, de Joaquim F. Nunes, Pelotas, 1862, 2 vols  [ clandestina, ‘pirata’]
3ª. ed. Bibliotheca Brasileira,  de Quintino bocaiúva – vol. IX, 1862; vol X, 1863 (reunidos em volume único 1863)
4ª. ed. Tipografia e Litografia Carioca, de  Dias da Silva Jr., 1876, 2 vols.
5ª ed.  Coleção Brasileira , de Domingos Magalhães, 1876 [uma das  edições com erros].
6a. ed  H. Garnier  1900 [edição com erros].
7ª. ed. Cia Gráfico Editora Monteiro Lobato, 1925
-- outras edições:  Jornal do Brasil, 1927;  Cultura Brasileira, 1937; Livraria Martins, 1941 [todas baseadas em edições   não fidedignas e com muitos erros].

 

- o texto em livro:

Memórias de um sargento de milícias

TOMO I
CAPÍTULO I

Origem, nascimento e batizado

Era no tempo do rei.
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo — O canto dos meirinhos —; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.
Daí sua influência moral.
Mas tinham ainda outra influência, que é justamente a que falta aos de hoje: era a influência que derivava de suas condições físicas. Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros; nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem-se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição. Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos: nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu
armado. Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava de sua posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, o cidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras, que, desdobrando junto dele uma folha de papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio em tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível — Dou-me por citado. —
Ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! eram uma
sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se
começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação, e
durante a qual se tinha de pagar importe de passagem em um sem-número de pontos; o advogado, o procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão estendida, e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.
(......)

segunda-feira, 9 de março de 2015

Notícia sobre um gigante do Brasil

Ao lado de Coelho Neto e Olavo Bilac (e um tanto de Joaquim Manuel de Macedo), José de Alencar  não tem devidamente reconhecido seu  excepcional valor literário -- e até mesmo histórico-linguístico, no que tange à criação e defesa de uma “língua semântica e literária brasileira".
Hoje, felizmente, denota-se um  processo de resgate : dirimidas, almeja-se, todas as dúvidas a respeito da importância fundamental da obra ficcional  de Alencar  para compreensão do nacionalismo  na literatura brasileira, nacionalismo entranhado na empreitada cultural por uma  língua brasileira.
Nenhum  escritor brasileiro foi e é tão versátil e eclético como Alencar, autor de romances (urbanos, indianistas, históricos, de costumes ), novelas, teatro, poesia, ensaios, artigos jornalísticos, memorialística. Nenhum escritor elevou o Romantismo literário brasileiro a  escalas  quantitativas e qualitativas como ele. E quase nenhum de seus contemporâneos --  exceção de Machado de Assis e Joaquim Manuel de Macedo -- soube, qual Alencar, captar e retratar tão bem o tempo histórico-político-social-cultural  do século XIX, no País.

A vasta obra ficcional de Alencar abarca toda a realidade brasileira : o indianismo , presente O guarani, Iracema e Ubirajara ; o urbanismo – tendo a então Corte, instalada na cidade do Rio de Janeiro, como ambientação -- retratado por A viuvinha, Cinco minutos, Lucíola, A pata da gazela, Diva, Sonhos d'ouro, Encarnação,  Senhora ; o regionalismo, expresso em O gaúcho, Tronco do ipê, Til , O sertanejo; o ao romance histórico, com As minas de prata, A guerra dos mascates, Alfarrábios.

Além do romance urbano e do indianista, Alencar  ainda incorporaria outros aspectos do Brasil em sua obra.  Til, O tronco do ipê, O sertanejo e O gaúcho mostram as peculiaridades culturais da nossa sociedade rural, com acontecimentos, paisagens, hábitos, maneiras de falar, vestir e se comportar diferentes da vida na Corte: em O gaúcho a Revolução Farroupilha (1835/1840) serve como pano de fundo à narrativa; o enredo de O tronco do ipê traz como cenário o interior fluminense e trata da ascensão social de um rapaz pobre; em Til, o interior paulista é o cenário da narrativa.

Mas Alencar não se limitou aos aspectos documentais. O que vale de fato nessas obras é, sobretudo, o poder de imaginação e a capacidade de construir narrativas bem estruturadas. Os personagens são heróis regionais puros, sensíveis, honrados, corteses, muito parecidos com os heróis dos romances indianistas. Mudavam as feições, mudava a roupagem, mudava o cenário. Mas na criação de todos esses personagens, Alencar perseguia o mesmo objetivo: chegar a um perfil do homem essencialmente brasileiro.


Não parou aí a investigação do escritor: servindo-se de fatos e lendas de nossa história, Alencar criaria ainda o chamado romance histórico, no qual  aparecem  tramas narrativas de intensa movimentação. Nessa categoria estão Guerra dos mascates, As minas de prata e Os alfarrábios : em Guerra dos mascates, personagens ficcionais escondem alguns políticos da época e até o próprio imperador (que aparece sob a pele do personagem Castro Caldas);  As minas de prata é uma espécie de modelo de romance histórico tal como esse tipo de romance era imaginado pelos ficcionistas de então: a  ação passa-se no século XVIII, uma época marcada pelo espírito de aventura. Com o romance histórico, Alencar completava o mapa do Brasil que desejara desenhar, fazendo aquilo que sabia fazer: literatura.
 Alencar, nesse particular, é um  dos autores mais representativos para o estudo, na teoria literária, do “mapeamento do DNA literário brasileiro” (junto com Gonçalves de Magalhães e Joaquim Manuel de Macedo) : foi ele, segundo Wilson Martins, o primeiro a escrever  um romance realista no Brasil --  o lamentavelmente inacabado Exhomem. Para todos os efeitos, Alencar é considerado  "o maior paladino" da causa da identidade nacional, baseada no que chamou de "dialeto brasileiro", que queria nitidamente diferente da língua portuguesa -- questão esta que ele  sempre procurou abordar de forma também eminentemente política.
Optando por reproduzir realisticamente em seus romances o falar brasileiro, pouco a pouco vê-se obrigado a defender publicamente sua opção. No prefácio a Sonhos d'ouro , por exemplo, ele justifica ironicamente o porquê dessa língua autônoma: “a manga, da primeira vez que a prova, acha-lhe o estrangeiro gosto de terebentina; depois de habituado, regala-se com o sabor delicioso. (…) O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?”
O processo de emancipação cultural encontrou na língua um instrumento privilegiado de luta política, na qual Alencar tem papel de destaque, não só pelo exemplo concreto fornecido por seus romances, como, e sobretudo, pelo engajamento explícito que teve nas querelas e polêmicas que se seguiram com escritores portugueses, sobretudo José Feliciano de Castilho.
Até sua morte, Alencar utilizaria  em sua obra a língua portuguesa naquela modalidade que chamou de "dialeto brasileiro", e continuaria tentando, exaustivamente, explicá-lo e legitimá-lo ao longo de inúmeros prefácios, posfácios, artigos de jornais e revistas e em sua correspondência particular. "Entendo que sendo a língua instrumento do espírito, não pode ficar estacionária quando este se desenvolve", diz ele no pós-escrito à segunda edição de Diva . Língua e nacionalismo são os temas  abordados, e Alencar é enfático ao expor sua idéia de que a cada povo corresponde uma maneira própria de ser e de falar. Ignorá-lo, pensa ele, seria ignorar a História; seria desprezar a evidência do progresso e da diferenciação existentes em cada povo; seria --”e isto é o mais grave”, alerta --  distanciar-se do público que o lê.
Para dar compreensibilidade a esse "dialeto brasileiro", eivado de tupi, do qual é o falante número um, no posfácio à segunda edição de Iracema  afirma :  “(...) quando povos de uma raça habitam a mesma região, a independência política só por si forma sua individualidade. Mas se esses povos vivem em continentes distintos, sob climas diferentes, não se rompem unicamente os vínculos políticos, opera-se, também, a separação nas idéias, nos sentimentos, nos costumes e, portanto, na língua, que é a expressão desses fatos morais e sociais (...)”.
Alencar tinha, portanto, perfeita consciência de dois fatos: a língua era instrumento ideológico ; os brasileiros deveriam usá-lo em seu projeto de auto-criação histórico-literária, política e cultural. Um processo profundamente nacionalista e necessariamente proposital e não é possível, no Brasil pós-Independência, deixar de mencionar o uso da língua como arma ideológica a serviço de uma "lusofobia emancipatória", da qual José de Alencar é figura proeminente, com sua contribuição à confecção da ”grande carta Brasil/literário” e a introdução da “noção de Pátria aliada à da Língua numa mesma equação”.                              

Paladino do romance urbano brasileiro

O cerne do Romantismo -- prevalecente na literatura brasileira do final da Regência, logo após a Independência, até os anos subseqüentes à Guerra do Paraguai -- é, desde sempre, de essência política. A confluência entre as questões da Independência e da cultura estava sedimentada pela escassa consciência de uma identidade nacional, fruto de descompasso entre a consciência política e a consciência literária.

Foi a primeira articulação verdadeiramente nacional da literatura brasileira,, nosso primeiro sistema literários “orgânico”, como o define Antonio Candido, dotado de consciência ideológica e de uma consciência intrínseca, programática, de sua brasilidade.
E nele, destacou- se Alencar,  o mais empenhado na criação de uma língua literária brasileira — a mais bela conquista do Romantismo — e no fomento/sedimentação de uma nacionalidade estilística e tramática na literatura que então se fazia. Pois só numa língua nacionalizada a literatura conseguiria atualizar e fazer evoluir seu potencial criativo e de interpretação da realidade social e humana  numa perspectiva autentica e essencialmente brasileira.
Quando se deu a publicação de Cinco minutos, a primeira obra ficcional de Alencar, o público brasileiro, já completamente habituado à leitura de romances, concedeu à novela “grande acolhida, enorme simpatia”,registram as notícias da época. Ao entrar para o cenário da produção cultural brasileira, ombreado com os poucos escritores que se dedicaram a produzir narrativas brasileiras — Teixeira e Sousa (O filho do pescador), Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha),  Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias) — Alencar percebeu logo que daria grande contribuição  à cultura  nacional se conseguisse produzir histórias que refletissem o máximo de nossa realidade psíquica e social: o que obviamente não acontecia com os romances importados. Procurou escrever romances que captassem a sensibilidade artística brasileira e que fossem, ao mesmo tempo, moldando  nossa percepção do real, ensinando-nos a apreciar as conformações gerais de nossa natureza, história, sociedade, cultura –e  fermentou e fomentou um processo que iria abrir o caminho para as grandes obras de Machado de Assis, Raul Pompéia,  Aluísio Azevedo.
 Ao contribuir intensamente para um processo de afirmação nacional, o Romantismo em sua última fase, mercê de evolução rápida mas firme, trocou a mística indianista, de cunho ideológico conservador,pela militância liberal — da qual o romance urbano de Alencar pode ser considerado expressão, no que tange a crítica política, social e econômica, o registro de valores comportamentais dissociados do ‘moralmente’ aceito.
Nesse particular, para exemplificar e ilustrar um processo evolutivo, a par da figura inicial do “índio cavalheiresco” — o mito heróico fomentado por Alencar, derivado da ‘cultura’ literária indianista que vinha desde a fase colonial — engendrado foi também um mito sentimental: a mocinha brasileira, romântica, terna. Esse perfil de heroína, cheia de efusão amorosa, incorporava-se à paisagem social da Corte e celebrava o ‘amor-destino’, vencendo os obstáculos do destino e da sociedade  — situando esse motivo romântico na moldura sensata e realista do meio burguês, sem personagens  das camadas populares, retratando o casamento como garantia social, os happy endings enaltecendo o sentimentalismo e confirmando a ordem social.
Alencar,o mais lido romancista do País,  assegurou à novelística e ao romanesco  brasileiros seu primeiro grande vôo literário, e seus “perfis de mulher” — em Cinco minutos e A Viuvinha, em Lucíola, Diva e Senhora — deram nova vida ao  romance urbano brasileiro. Todo ele, mister frisar, ambientado na cidade do Rio de Janeiro.
 De forma incipiente nas duas  primeiras novelas, mais consistentemente nos romances seguintes, Alencar aprofunda a significação humana da história de amor. O conflito psicológico em Cinco minutos e em A Viuvinha se mantém ‘raso’, conforme (não poderia deixar de ser) o ideário convencional e conservador da sociedade  de então — ambos, estórias da moça que conhece um grande amor : a evolução dissociativa desse molde e o aprofundamento da densidade psicológica viriam nas três  obras subseqüentes.
Alencar, como nenhum outro, emblematiza o início, evolução, pujança e fim do Romantismo brasileiro. Ainda que ‘didaticamente/academicamente’ o encerramento do processo da literatura romântica, e advento do início do Realismo/Naturalismo, seja oficializado pela publicação do ‘romance de transição’ de Machado de Assis, Iaiá Garcia , em 1878 ( a transição contística machadiana está em Papéis avulsos, de 1881), muitos estudiosos na verdade situam –no em 1877, ano da morte de Alencar, em justa homenagem a um dos maiores nomes da literatura brasileira.

Ode ao amor em perfis femininos

Em meados do século XIX,  as mulheres da burguesia costumavam socializar as obras literárias por meio da leitura coletiva de jornais. Enquanto bordavam, em grandes salões,  se emocionavam com o simples e mágico ato de ler em voz alta e por meio dessas leituras, autores românticos penetraram na sociedade através desse público ouvinte para quem, gradativamente, se habituavam a escrever. Esses momentos exalavam prazer, soluços, risos,  sentimentos provocados pelos romances românticos e seus personagens marcantes. José de Alencar, ao  desvelar as várias faces de um Brasil recém independente, em busca de suas singularidades para delinear e sedimentar a identidade nacional, iniciar os brasileiros no conhecimento da realidade de seu país  adentrava na intimidade burguesa da cidade do Rio de Janeiro.
Em função da ânsia de ganhos que começa a prevalecer na mente das pessoas, para um certo segmento da sociedade surge o sentimento de frustração, de perda de valores, já que o homem começa a degradar-se para conseguir uma boa posição social. E nisso reside o cerne do teor crítico imprimido por Alencar , em maior ou menor grau, a seus romances urbanos, —como por exemplo as vicissitudes do personagem Jorge em A Viuvinha, que “(...) começou a viver essa vida dos nossos moços ricos, os quais pensam que gastar o dinheiro que seus pais ganharam é uma profissão suficiente para que se dispensem de abraçar qualquer outra, essas esterilidades a que se condenam homens que, pela sua posição independente, podiam aspirar a um futuro brilhante (...),  essa descuidosa existência da gente rica, apesar do novo progresso econômico da divisão do trabalho, que multiplicou infinitamente as indústrias, e por conseguinte as profissões, a questão ainda é bem difícil de resolver para aqueles que não querem trabalhar (...),  em uma época em que dominava a vertigem do suicídio”
 No contraponto a esse cenário de realidade social, se Alencar o denuncia e critica, não deixa de, como todos os românticos e seu ideário ficcional, pretender o predomínio da emoção sobre a razão, a liberação dos sentimentos dos sentimentos, a redenção e superação do materialismo pelo amor, a resistência  “a todas as seduções do mundo, sucumbir à força poderosa do amor puro e desinteressado”--  insiste na idéia de que o amor é um instrumento eficaz contra a despersonalização capitalista.
Soube ele, com enormes talento, competência e discernimento, desnudar o modo de vida na Corte, retratar  o cotidiano do Segundo Império , denunciar a burguesia negociando casamentos e amor, dramas morais e afetivos, tipos femininos imersos nos problemas de amor e do casamento, sob o manto do  patriarcalismo ou do matriarcado, colocando os costumes morais, sociais e políticos da sociedade burguesa de então como  o centro do romance urbano — mas sob enredo sempre idealista, concebido segundo a imaginação e o sentimentalismo romântico.
Alencar jamais perde a visão de conjunto de sua narrativa. Se a ação de seus personagens faz surgir acontecimentos que parecem bordejar o inverossímil, isso se dá por um momento fugaz, como brilhante recurso narrativo — afinal, alerta ele tanto em Cinco minutos como em A Viuvinha, “é uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história, e não um romance ; não escrevo um romance, conto-lhe uma história. A verdade dispensa a verossimilhança”. E tudo acaba por explicar-se convenientemente,  e o leitor termina ‘pacificado’.
 Este processo de compensação,  que permeia toda  sua obra, começou a ganhar foro de estilo (o ‘estilo Alencar'’) a partir justamente das primeiras   experiências de romance urbano (seus “ romancetes”). Em ambos utiliza o expediente, inédito à época, da figura da “prima D...”, condutora do desenrolar das intrigas das novelas, interlocutora privilegiada, nomeada como responsável pela fé depositada no escritor , com quem inclusive o autor ‘dialoga’, a la Machado de Assis (bem antes deste).
Nessas duas novelas precursoras, a história em contraposição ao romance, inovador ainda é o elemento metaliterário utilizado em Cinco minutos quando envia à ‘prima’ a cópia de um hipotético manuscrito realizada por ele e Carlota  "nos longos serões das nossas noites de inverno " — a  ficção dentro da ficção, inaugurando elemento somente muitos anos depois utilizado na literatura brasileira.
O narrador em ambas as novelas,como quase todo narrador romântico, procura criar a impressão de que o seu relato é verídico: teve existência real antes de assumir a forma literária. Esse narrador, enfim, confunde-se com um outro "eu" inventado por  Alencar em seus romances urbanos,  a tonalidade de voz assumida na transmissão de Cinco minutos e A Viuvinha, depois em Lucíola, é semelhante à de Senhora  —todos muito diferentes do acento narrativo de Iracema ou de O guarani.
Nas duas obras iniciais Alencar põe mais alta a essência da feminilidade, mas  traçando o perfil da “mulher cordial,romântica, idílica”—distinto da “mulher cerebral”, depois desenhado em Lucíola e mais adiante  com rigor e plenitude em  Senhora— perfil inerente tanto a Carlota  de Cinco minutos como a Carolina  de A Viuvinha.
Em Cinco minutos, o narrador em primeira pessoa — relatando  sua estória em carta à “prima D...” —é um típico ‘herói romântico, apaixonado, arrebatado por um amor irresistível’ : um exemplo clássico do Romantismo ao mostrar  ‘o amor puro, casto, duradouro e curativo, sentido por duas almas gêmeas perfeitas, com o destino interpondo-se no caminho e resolvendo-se no final’.Em A Viuvinha, narrada  em terceira pessoa —também à “prima D...” —  o personagem principal é moldado, a princípio  um pouco distante daquilo que se espera de um herói tipicamente romântico : Alencar desfila seus olhos pelas mazelas morais que são fruto do  capitalismo nascente e do culto ao perdularismo advindo da acumulação financeira, mas  como homem de seu tempo , não dá a Jorge as dimensões funestas dos personagens que seriam típicos mais tarde no Realismo, espicaçando-lhes os desvios de comportamento, ao contrário acaba por redimi-lo.