Ao lado de Coelho Neto e Olavo Bilac (e um tanto de Joaquim Manuel de Macedo),
José de Alencar não tem devidamente
reconhecido seu excepcional valor
literário -- e até mesmo histórico-linguístico, no que tange à criação e defesa
de uma “língua semântica e literária brasileira".
Hoje,
felizmente, denota-se um processo de
resgate : dirimidas, almeja-se, todas as dúvidas a respeito da importância
fundamental da obra ficcional de
Alencar para compreensão do
nacionalismo na literatura brasileira,
nacionalismo entranhado na empreitada cultural por uma língua brasileira.
Nenhum escritor brasileiro foi e é tão versátil e
eclético como Alencar, autor de romances (urbanos, indianistas, históricos, de
costumes ), novelas, teatro, poesia, ensaios, artigos jornalísticos,
memorialística. Nenhum escritor elevou o Romantismo literário brasileiro a escalas
quantitativas e qualitativas como ele. E quase nenhum de seus
contemporâneos -- exceção de Machado de
Assis e Joaquim Manuel de Macedo -- soube, qual Alencar, captar e retratar tão
bem o tempo histórico-político-social-cultural
do século XIX, no País.
A vasta obra ficcional
de Alencar abarca toda a realidade brasileira : o indianismo , presente O guarani, Iracema e Ubirajara ; o
urbanismo – tendo a então Corte, instalada na cidade do Rio de Janeiro, como
ambientação -- retratado por A viuvinha,
Cinco minutos, Lucíola, A pata da
gazela, Diva, Sonhos d'ouro, Encarnação,
Senhora ; o regionalismo, expresso em O gaúcho, Tronco do ipê, Til , O sertanejo; o ao romance histórico,
com As minas de prata, A guerra dos mascates, Alfarrábios.
Além
do romance urbano e do indianista, Alencar
ainda incorporaria outros aspectos do Brasil em sua obra. Til,
O tronco do ipê, O sertanejo e O gaúcho
mostram as peculiaridades culturais da nossa sociedade rural, com
acontecimentos, paisagens, hábitos, maneiras de falar, vestir e se comportar diferentes
da vida na Corte: em O gaúcho a
Revolução Farroupilha (1835/1840) serve como pano de fundo à narrativa; o
enredo de O tronco do ipê traz como
cenário o interior fluminense e trata da ascensão social de um rapaz pobre; em Til, o interior paulista é o cenário da
narrativa.
Mas
Alencar não se limitou aos aspectos documentais. O que vale de fato nessas
obras é, sobretudo, o poder de imaginação e a capacidade de construir
narrativas bem estruturadas. Os personagens são heróis regionais puros,
sensíveis, honrados, corteses, muito parecidos com os heróis dos romances
indianistas. Mudavam as feições, mudava a roupagem, mudava o cenário. Mas na
criação de todos esses personagens, Alencar perseguia o mesmo objetivo: chegar
a um perfil do homem essencialmente brasileiro.
Não
parou aí a investigação do escritor: servindo-se de fatos e lendas de nossa
história, Alencar criaria ainda o chamado romance histórico, no qual aparecem tramas narrativas de intensa movimentação.
Nessa categoria estão Guerra dos mascates,
As minas de prata e Os alfarrábios : em Guerra dos mascates, personagens ficcionais escondem alguns
políticos da época e até o próprio imperador (que aparece sob a pele do
personagem Castro Caldas); As minas de prata é uma espécie de
modelo de romance histórico tal como esse tipo de romance era imaginado pelos
ficcionistas de então: a ação passa-se
no século XVIII, uma época marcada pelo espírito de aventura. Com o romance
histórico, Alencar completava o mapa do Brasil que desejara desenhar, fazendo
aquilo que sabia fazer: literatura.
Alencar,
nesse particular, é um dos autores mais
representativos para o estudo, na teoria literária, do “mapeamento do DNA
literário brasileiro” (junto com Gonçalves de Magalhães e Joaquim Manuel de
Macedo) : foi ele, segundo Wilson Martins, o primeiro a escrever um romance realista no Brasil -- o lamentavelmente inacabado Exhomem. Para todos os efeitos, Alencar
é considerado "o maior
paladino" da causa da identidade nacional, baseada no que chamou de
"dialeto brasileiro", que queria nitidamente diferente da língua
portuguesa -- questão esta que ele
sempre procurou abordar de forma também eminentemente política.
Optando
por reproduzir realisticamente em seus romances o falar brasileiro, pouco a
pouco vê-se obrigado a defender publicamente sua opção. No prefácio a Sonhos d'ouro , por exemplo, ele
justifica ironicamente o porquê dessa língua autônoma: “a manga, da primeira vez que a prova, acha-lhe o estrangeiro gosto de
terebentina; depois de habituado, regala-se com o sabor delicioso. (…) O povo
que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba pode falar uma língua com
igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco
e a nêspera?”
O
processo de emancipação cultural encontrou na língua um instrumento
privilegiado de luta política, na qual Alencar tem papel de destaque, não só
pelo exemplo concreto fornecido por seus romances, como, e sobretudo, pelo
engajamento explícito que teve nas querelas e polêmicas que se seguiram com
escritores portugueses, sobretudo José Feliciano de Castilho.
Até
sua morte, Alencar utilizaria em sua
obra a língua portuguesa naquela modalidade que chamou de "dialeto
brasileiro", e continuaria tentando, exaustivamente, explicá-lo e
legitimá-lo ao longo de inúmeros prefácios, posfácios, artigos de jornais e
revistas e em sua correspondência particular. "Entendo que sendo a língua instrumento do espírito, não pode ficar
estacionária quando este se desenvolve", diz ele no pós-escrito à
segunda edição de Diva . Língua e
nacionalismo são os temas abordados, e
Alencar é enfático ao expor sua idéia de que a cada povo corresponde uma
maneira própria de ser e de falar. Ignorá-lo, pensa ele, seria ignorar a
História; seria desprezar a evidência do progresso e da diferenciação
existentes em cada povo; seria --”e isto é o mais grave”, alerta -- distanciar-se do público que o lê.
Para
dar compreensibilidade a esse "dialeto brasileiro", eivado de tupi,
do qual é o falante número um, no posfácio à segunda edição de Iracema afirma : “(...) quando povos de uma raça habitam a
mesma região, a independência política só por si forma sua individualidade. Mas
se esses povos vivem em continentes distintos, sob climas diferentes, não se
rompem unicamente os vínculos políticos, opera-se, também, a separação nas
idéias, nos sentimentos, nos costumes e, portanto, na língua, que é a expressão
desses fatos morais e sociais (...)”.
Alencar
tinha, portanto, perfeita consciência de dois fatos: a língua era instrumento
ideológico ; os brasileiros deveriam usá-lo em seu projeto de auto-criação
histórico-literária, política e cultural. Um processo profundamente
nacionalista e necessariamente proposital e não é possível, no Brasil
pós-Independência, deixar de mencionar o uso da língua como arma ideológica a
serviço de uma "lusofobia emancipatória", da qual José de Alencar é
figura proeminente, com sua contribuição à confecção da ”grande carta
Brasil/literário” e a introdução da “noção de Pátria aliada à da Língua numa
mesma equação”.
Paladino do romance urbano brasileiro
O
cerne do Romantismo -- prevalecente na literatura brasileira do final da
Regência, logo após a Independência, até os anos subseqüentes à Guerra do
Paraguai -- é, desde sempre, de essência política. A confluência entre as
questões da Independência e da cultura estava sedimentada pela escassa
consciência de uma identidade nacional, fruto de descompasso entre a
consciência política e a consciência literária.
Foi a primeira articulação verdadeiramente
nacional da literatura brasileira,, nosso primeiro sistema literários
“orgânico”, como o define Antonio Candido, dotado de consciência ideológica e
de uma consciência intrínseca, programática, de sua brasilidade.
E nele, destacou-
se Alencar, o mais empenhado na criação
de uma língua literária brasileira — a mais bela conquista do Romantismo — e no
fomento/sedimentação de uma nacionalidade estilística e tramática na literatura
que então se fazia. Pois só numa língua nacionalizada a literatura conseguiria
atualizar e fazer evoluir seu potencial criativo e de interpretação da
realidade social e humana numa
perspectiva autentica e essencialmente brasileira.
Quando
se deu a publicação de Cinco minutos, a primeira obra ficcional de Alencar, o público brasileiro, já
completamente habituado à leitura de romances, concedeu à novela “grande
acolhida, enorme simpatia”,registram as notícias da época. Ao entrar para o
cenário da produção cultural brasileira, ombreado com os poucos escritores que
se dedicaram a produzir narrativas brasileiras — Teixeira e Sousa (O filho
do pescador), Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha), Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um
sargento de milícias) — Alencar percebeu logo que daria grande contribuição
à cultura nacional se conseguisse produzir histórias que
refletissem o máximo de nossa realidade psíquica e social: o que obviamente não
acontecia com os romances importados. Procurou escrever romances que captassem
a sensibilidade artística brasileira e que fossem, ao mesmo tempo,
moldando nossa percepção do real,
ensinando-nos a apreciar as conformações gerais de nossa natureza, história,
sociedade, cultura –e fermentou e
fomentou um processo que iria abrir o caminho para as grandes obras de Machado
de Assis, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo.
Ao
contribuir intensamente para um processo de afirmação nacional, o Romantismo em
sua última fase, mercê de evolução rápida mas firme, trocou a mística
indianista, de cunho ideológico conservador,pela militância liberal — da qual o
romance urbano de Alencar pode ser considerado expressão, no que tange a
crítica política, social e econômica, o registro de valores comportamentais
dissociados do ‘moralmente’ aceito.
Nesse
particular, para exemplificar e ilustrar um processo evolutivo, a par da figura
inicial do “índio cavalheiresco” — o mito heróico fomentado por Alencar,
derivado da ‘cultura’ literária indianista que vinha desde a fase colonial —
engendrado foi também um mito sentimental: a mocinha brasileira, romântica,
terna. Esse perfil de heroína, cheia de efusão amorosa, incorporava-se à
paisagem social da Corte e celebrava o ‘amor-destino’, vencendo os obstáculos
do destino e da sociedade — situando
esse motivo romântico na moldura sensata e realista do meio burguês, sem
personagens das camadas populares, retratando
o casamento como garantia social, os happy endings enaltecendo o
sentimentalismo e confirmando a ordem social.
Alencar,o
mais lido romancista do País, assegurou
à novelística e ao romanesco brasileiros
seu primeiro grande vôo literário, e seus “perfis de mulher” — em Cinco
minutos e A Viuvinha, em Lucíola, Diva e Senhora
— deram nova vida ao romance urbano
brasileiro. Todo ele, mister frisar, ambientado na cidade do Rio de Janeiro.
De
forma incipiente nas duas primeiras
novelas, mais consistentemente nos romances seguintes, Alencar aprofunda a
significação humana da história de amor. O conflito psicológico em Cinco
minutos e em A Viuvinha se mantém ‘raso’, conforme (não poderia
deixar de ser) o ideário convencional e conservador da sociedade de então — ambos, estórias da moça que
conhece um grande amor : a evolução dissociativa desse molde e o aprofundamento
da densidade psicológica viriam nas três
obras subseqüentes.
Alencar,
como nenhum outro, emblematiza o início, evolução, pujança e fim do Romantismo
brasileiro. Ainda que ‘didaticamente/academicamente’ o encerramento do processo
da literatura romântica, e advento do início do Realismo/Naturalismo, seja
oficializado pela publicação do ‘romance de transição’ de Machado de Assis, Iaiá
Garcia , em 1878 ( a transição contística machadiana está em Papéis
avulsos, de 1881), muitos estudiosos na verdade situam –no em 1877, ano da
morte de Alencar, em justa homenagem a um dos maiores nomes da literatura brasileira.
Ode ao amor em perfis femininos
Em meados do
século XIX, as mulheres da burguesia
costumavam socializar as obras literárias por meio da leitura coletiva de
jornais. Enquanto bordavam, em grandes salões,
se emocionavam com o simples e mágico ato de ler em voz alta e por meio
dessas leituras, autores românticos penetraram na sociedade através desse
público ouvinte para quem, gradativamente, se habituavam a escrever. Esses
momentos exalavam prazer, soluços, risos, sentimentos provocados pelos romances
românticos e seus personagens marcantes. José de Alencar, ao desvelar as várias faces de um Brasil recém
independente, em busca de suas singularidades para delinear e sedimentar a
identidade nacional, iniciar os brasileiros no conhecimento da realidade de seu
país adentrava na intimidade burguesa da
cidade do Rio de Janeiro.
Em função da ânsia de ganhos que começa a prevalecer na
mente das pessoas, para um certo segmento da sociedade surge o sentimento de
frustração, de perda de valores, já que o homem começa a degradar-se para
conseguir uma boa posição social. E nisso reside o cerne do teor crítico
imprimido por Alencar , em maior ou menor grau, a seus romances urbanos, —como
por exemplo as vicissitudes do personagem Jorge em A Viuvinha, que
“(...) começou a viver essa vida dos nossos
moços ricos, os quais pensam que gastar o dinheiro que seus pais ganharam é uma
profissão suficiente para que se dispensem de abraçar qualquer outra, essas
esterilidades a que se condenam homens que, pela sua posição independente,
podiam aspirar a um futuro brilhante (...),
essa descuidosa existência da gente rica, apesar do novo progresso econômico da
divisão do trabalho, que multiplicou infinitamente as indústrias, e por
conseguinte as profissões, a questão ainda é bem difícil de resolver para
aqueles que não querem trabalhar (...),
em uma época em que dominava a vertigem do suicídio”
No contraponto a esse cenário de realidade social, se
Alencar o denuncia e critica, não deixa de, como todos os românticos e seu
ideário ficcional, pretender o predomínio da emoção sobre a razão, a liberação
dos sentimentos dos sentimentos, a redenção e superação do materialismo pelo
amor, a resistência “a todas as seduções do mundo, sucumbir à
força poderosa do amor puro e desinteressado”-- insiste na idéia de
que o amor é um instrumento eficaz contra a despersonalização capitalista.
Soube ele, com enormes talento, competência e discernimento,
desnudar o modo de vida na Corte, retratar
o cotidiano do Segundo Império , denunciar a burguesia negociando
casamentos e amor, dramas morais e afetivos, tipos femininos imersos nos
problemas de amor e do casamento, sob o manto do patriarcalismo ou do matriarcado, colocando os
costumes morais, sociais e políticos da sociedade burguesa de então como o centro do romance urbano — mas sob enredo
sempre idealista, concebido segundo a imaginação e o sentimentalismo romântico.
Alencar jamais perde a visão de conjunto de sua narrativa.
Se a ação de seus personagens faz surgir acontecimentos que parecem bordejar o
inverossímil, isso se dá por um momento fugaz, como brilhante recurso narrativo
— afinal, alerta ele tanto em Cinco minutos como em A Viuvinha,
“é uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história,
e não um romance ; não escrevo um romance, conto-lhe uma história. A verdade dispensa a verossimilhança”. E tudo acaba por explicar-se
convenientemente, e o leitor termina
‘pacificado’.
Este processo de compensação, que permeia toda sua obra, começou a ganhar foro de estilo (o
‘estilo Alencar'’) a partir justamente das primeiras experiências de romance urbano (seus “
romancetes”). Em ambos utiliza o expediente, inédito à época, da figura da
“prima D...”, condutora do desenrolar das intrigas das novelas, interlocutora
privilegiada, nomeada como responsável pela fé depositada no escritor , com
quem inclusive o autor ‘dialoga’, a la Machado de Assis (bem antes
deste).
Nessas
duas novelas precursoras, a história em contraposição ao romance, inovador
ainda é o elemento metaliterário utilizado em Cinco minutos quando envia
à ‘prima’ a cópia de um hipotético manuscrito realizada por ele e Carlota "nos longos serões das nossas noites de
inverno " — a ficção dentro da
ficção, inaugurando elemento somente muitos anos depois utilizado na literatura
brasileira.
O
narrador em ambas as novelas,como quase todo narrador romântico, procura criar
a impressão de que o seu relato é verídico: teve existência real antes de
assumir a forma literária. Esse narrador, enfim, confunde-se com um outro
"eu" inventado por Alencar em
seus romances urbanos, a tonalidade de
voz assumida na transmissão de Cinco minutos e A Viuvinha, depois
em Lucíola, é semelhante à de Senhora —todos muito diferentes do acento narrativo
de Iracema ou de O guarani.
Nas
duas obras iniciais Alencar põe mais alta a essência da feminilidade, mas traçando o perfil da “mulher
cordial,romântica, idílica”—distinto da “mulher cerebral”, depois desenhado em Lucíola
e mais adiante com rigor e plenitude
em Senhora— perfil inerente tanto
a Carlota de Cinco minutos como a
Carolina de A Viuvinha.
Em
Cinco minutos, o narrador em primeira pessoa — relatando sua estória em carta à “prima D...” —é um
típico ‘herói romântico, apaixonado, arrebatado por um amor irresistível’ : um
exemplo clássico do Romantismo ao mostrar
‘o amor puro, casto, duradouro e curativo, sentido por duas almas gêmeas
perfeitas, com o destino interpondo-se no caminho e resolvendo-se no final’.Em A
Viuvinha, narrada em terceira pessoa
—também à “prima D...” — o personagem
principal é moldado, a princípio um pouco
distante daquilo que se espera de um herói tipicamente romântico : Alencar
desfila seus olhos pelas mazelas morais que são fruto do capitalismo nascente e do culto ao
perdularismo advindo da acumulação financeira, mas como homem de seu tempo , não dá a Jorge as
dimensões funestas dos personagens que seriam típicos mais tarde no Realismo,
espicaçando-lhes os desvios de comportamento, ao contrário acaba por redimi-lo.