com fito e mote registrar a natureza do Rio de Janeiro como autêntica "cidade literária" -- ao mesmo tempo referenciar e reverenciar a cidade em seus 450 anos de existência.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Singularidades de essência literária carioca


 Memórias de um sargento de milícias  : origem do malandro brasileiro
                                                                             ____________________      

Já foi vaticinado – e a meu juízo, com bastante fundamento – que Memórias de um sargento de milícias , primeiramente veiculado  em folhetins no Correio Mercantil entre junho 1852  e   julho 1853,  publicado em livro em 1854 (1º. volume)  e  1865( 2º. volume), é ‘o mais carioca dos romances brasileiros’ :não diz-se de todos os tempos,mas dos Oitocentos e do Romantismo  digo que é ( abalizadas análises projetam a obra de  Manuel Antonio de Almeida  na verdade como um antecipador do Realismo)

Sem dúvidas, Memórias de um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida  podem ser vistos, a obra e o autor,  como um pólo gerador de eixos de ilações e recorrências com as algumas  obras e autores tanto de um  como do outro ciclo historiográfico da literatura brasileira. Antonio de Almeida e sua obra são efetivamente   emblemáticos  de uma inflexão temática, tramática e estilística no romantismo literário brasileiro, e em sua característica de  antecipação  do Realismo, simplesmente prenuncia Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis – obra inovadora,  marco da inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário brasileiro. ( Antonio de Almeida e Machado, como se sabe, mantiveram excelente relacionamento e marcantes  afinidades  profissionais, a par de  ilações literárias: Almeida foi chefe de Machado na oficina da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de tipografia,  introduziu-o  na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de Paula Brito, foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado, inclusive,dedicou a ele o importantíssimo artigo “O jornal e o livro”, publicado em janeiro 1859 no Correio Mercantil ).
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Memórias de um sargento de milícias :-‘anárquica’, ‘picaresca’, segundo Mario de Andrade, tem no protagonista Leonardo Filho antes de ser um ‘pícaro’, ‘thorminiano’ (de Lazarillo de Thormes),  o primeiro malandro da literatura brasileira, conforme Antonio Candido em seu primoroso ensaio “Dialética da malandragem”..
       
Memórias de um sargento de milícias. é antes de tudo, um romance social – daí os laços premonitórios com o Realismo; mas é também uma história do amor, no pleno estilo (e ‘dialética’)  do Romantismo, de Leonardo Filho por Luisinha,  retratando uma família – só que personalizando em Leonardo, um anti-patriota objeto da repressão de uma sociedade forte,preocupada com a ordem pública,  uma contraposição,  confrontante, com a ordem estabelecida, com o status institucionalizado, com a ordem  social, com o país: hilariante sátira sócio-política,  representa, expressa, emblematiza  metáforas sobre o destino do Brasil  como Nação;  Antônio de Almeida, guardadas as devidas proporções, mantém em  comum com os seqüentes autores realistas a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade, haja vista a essência do  universo dos personagens da obra– empregados, subempregados, desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados.
                                            ........................................

O texto original do escrito de Manuel Antonio de Almeida veiculado  em folhetins no Correio Mercantil, na seção “Pacotilha”, especificamente de caráter humorístico e satírico, distinto do escopo geral do jornal , entre junho 1852  e   julho 1853, apresenta variações e notórias diferenças  com o texto, dado como ‘oficial’, publicado em livro em 1854 (1º. volume)  e  1865( 2º. volume), pela tipografia do Correio Mercantil : as edições em livro  sucederam-se ao longo  século XIX – e incorrem numa lamentável história de  graves incorreções de texto .
2ª.ed Tipografia do Comércio, de Joaquim F. Nunes, Pelotas, 1862, 2 vols  [ clandestina, ‘pirata’]
3ª. ed. Bibliotheca Brasileira,  de Quintino bocaiúva – vol. IX, 1862; vol X, 1863 (reunidos em volume único 1863)
4ª. ed. Tipografia e Litografia Carioca, de  Dias da Silva Jr., 1876, 2 vols.
5ª ed.  Coleção Brasileira , de Domingos Magalhães, 1876 [uma das  edições com erros].
6a. ed  H. Garnier  1900 [edição com erros].
7ª. ed. Cia Gráfico Editora Monteiro Lobato, 1925
-- outras edições:  Jornal do Brasil, 1927;  Cultura Brasileira, 1937; Livraria Martins, 1941 [todas baseadas em edições   não fidedignas e com muitos erros].

 

- o texto em livro:

Memórias de um sargento de milícias

TOMO I
CAPÍTULO I

Origem, nascimento e batizado

Era no tempo do rei.
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo — O canto dos meirinhos —; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.
Daí sua influência moral.
Mas tinham ainda outra influência, que é justamente a que falta aos de hoje: era a influência que derivava de suas condições físicas. Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros; nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem-se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição. Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos: nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu
armado. Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava de sua posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, o cidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras, que, desdobrando junto dele uma folha de papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio em tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível — Dou-me por citado. —
Ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! eram uma
sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se
começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação, e
durante a qual se tinha de pagar importe de passagem em um sem-número de pontos; o advogado, o procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão estendida, e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.
(......)

segunda-feira, 9 de março de 2015

Notícia sobre um gigante do Brasil

Ao lado de Coelho Neto e Olavo Bilac (e um tanto de Joaquim Manuel de Macedo), José de Alencar  não tem devidamente reconhecido seu  excepcional valor literário -- e até mesmo histórico-linguístico, no que tange à criação e defesa de uma “língua semântica e literária brasileira".
Hoje, felizmente, denota-se um  processo de resgate : dirimidas, almeja-se, todas as dúvidas a respeito da importância fundamental da obra ficcional  de Alencar  para compreensão do nacionalismo  na literatura brasileira, nacionalismo entranhado na empreitada cultural por uma  língua brasileira.
Nenhum  escritor brasileiro foi e é tão versátil e eclético como Alencar, autor de romances (urbanos, indianistas, históricos, de costumes ), novelas, teatro, poesia, ensaios, artigos jornalísticos, memorialística. Nenhum escritor elevou o Romantismo literário brasileiro a  escalas  quantitativas e qualitativas como ele. E quase nenhum de seus contemporâneos --  exceção de Machado de Assis e Joaquim Manuel de Macedo -- soube, qual Alencar, captar e retratar tão bem o tempo histórico-político-social-cultural  do século XIX, no País.

A vasta obra ficcional de Alencar abarca toda a realidade brasileira : o indianismo , presente O guarani, Iracema e Ubirajara ; o urbanismo – tendo a então Corte, instalada na cidade do Rio de Janeiro, como ambientação -- retratado por A viuvinha, Cinco minutos, Lucíola, A pata da gazela, Diva, Sonhos d'ouro, Encarnação,  Senhora ; o regionalismo, expresso em O gaúcho, Tronco do ipê, Til , O sertanejo; o ao romance histórico, com As minas de prata, A guerra dos mascates, Alfarrábios.

Além do romance urbano e do indianista, Alencar  ainda incorporaria outros aspectos do Brasil em sua obra.  Til, O tronco do ipê, O sertanejo e O gaúcho mostram as peculiaridades culturais da nossa sociedade rural, com acontecimentos, paisagens, hábitos, maneiras de falar, vestir e se comportar diferentes da vida na Corte: em O gaúcho a Revolução Farroupilha (1835/1840) serve como pano de fundo à narrativa; o enredo de O tronco do ipê traz como cenário o interior fluminense e trata da ascensão social de um rapaz pobre; em Til, o interior paulista é o cenário da narrativa.

Mas Alencar não se limitou aos aspectos documentais. O que vale de fato nessas obras é, sobretudo, o poder de imaginação e a capacidade de construir narrativas bem estruturadas. Os personagens são heróis regionais puros, sensíveis, honrados, corteses, muito parecidos com os heróis dos romances indianistas. Mudavam as feições, mudava a roupagem, mudava o cenário. Mas na criação de todos esses personagens, Alencar perseguia o mesmo objetivo: chegar a um perfil do homem essencialmente brasileiro.


Não parou aí a investigação do escritor: servindo-se de fatos e lendas de nossa história, Alencar criaria ainda o chamado romance histórico, no qual  aparecem  tramas narrativas de intensa movimentação. Nessa categoria estão Guerra dos mascates, As minas de prata e Os alfarrábios : em Guerra dos mascates, personagens ficcionais escondem alguns políticos da época e até o próprio imperador (que aparece sob a pele do personagem Castro Caldas);  As minas de prata é uma espécie de modelo de romance histórico tal como esse tipo de romance era imaginado pelos ficcionistas de então: a  ação passa-se no século XVIII, uma época marcada pelo espírito de aventura. Com o romance histórico, Alencar completava o mapa do Brasil que desejara desenhar, fazendo aquilo que sabia fazer: literatura.
 Alencar, nesse particular, é um  dos autores mais representativos para o estudo, na teoria literária, do “mapeamento do DNA literário brasileiro” (junto com Gonçalves de Magalhães e Joaquim Manuel de Macedo) : foi ele, segundo Wilson Martins, o primeiro a escrever  um romance realista no Brasil --  o lamentavelmente inacabado Exhomem. Para todos os efeitos, Alencar é considerado  "o maior paladino" da causa da identidade nacional, baseada no que chamou de "dialeto brasileiro", que queria nitidamente diferente da língua portuguesa -- questão esta que ele  sempre procurou abordar de forma também eminentemente política.
Optando por reproduzir realisticamente em seus romances o falar brasileiro, pouco a pouco vê-se obrigado a defender publicamente sua opção. No prefácio a Sonhos d'ouro , por exemplo, ele justifica ironicamente o porquê dessa língua autônoma: “a manga, da primeira vez que a prova, acha-lhe o estrangeiro gosto de terebentina; depois de habituado, regala-se com o sabor delicioso. (…) O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?”
O processo de emancipação cultural encontrou na língua um instrumento privilegiado de luta política, na qual Alencar tem papel de destaque, não só pelo exemplo concreto fornecido por seus romances, como, e sobretudo, pelo engajamento explícito que teve nas querelas e polêmicas que se seguiram com escritores portugueses, sobretudo José Feliciano de Castilho.
Até sua morte, Alencar utilizaria  em sua obra a língua portuguesa naquela modalidade que chamou de "dialeto brasileiro", e continuaria tentando, exaustivamente, explicá-lo e legitimá-lo ao longo de inúmeros prefácios, posfácios, artigos de jornais e revistas e em sua correspondência particular. "Entendo que sendo a língua instrumento do espírito, não pode ficar estacionária quando este se desenvolve", diz ele no pós-escrito à segunda edição de Diva . Língua e nacionalismo são os temas  abordados, e Alencar é enfático ao expor sua idéia de que a cada povo corresponde uma maneira própria de ser e de falar. Ignorá-lo, pensa ele, seria ignorar a História; seria desprezar a evidência do progresso e da diferenciação existentes em cada povo; seria --”e isto é o mais grave”, alerta --  distanciar-se do público que o lê.
Para dar compreensibilidade a esse "dialeto brasileiro", eivado de tupi, do qual é o falante número um, no posfácio à segunda edição de Iracema  afirma :  “(...) quando povos de uma raça habitam a mesma região, a independência política só por si forma sua individualidade. Mas se esses povos vivem em continentes distintos, sob climas diferentes, não se rompem unicamente os vínculos políticos, opera-se, também, a separação nas idéias, nos sentimentos, nos costumes e, portanto, na língua, que é a expressão desses fatos morais e sociais (...)”.
Alencar tinha, portanto, perfeita consciência de dois fatos: a língua era instrumento ideológico ; os brasileiros deveriam usá-lo em seu projeto de auto-criação histórico-literária, política e cultural. Um processo profundamente nacionalista e necessariamente proposital e não é possível, no Brasil pós-Independência, deixar de mencionar o uso da língua como arma ideológica a serviço de uma "lusofobia emancipatória", da qual José de Alencar é figura proeminente, com sua contribuição à confecção da ”grande carta Brasil/literário” e a introdução da “noção de Pátria aliada à da Língua numa mesma equação”.                              

Paladino do romance urbano brasileiro

O cerne do Romantismo -- prevalecente na literatura brasileira do final da Regência, logo após a Independência, até os anos subseqüentes à Guerra do Paraguai -- é, desde sempre, de essência política. A confluência entre as questões da Independência e da cultura estava sedimentada pela escassa consciência de uma identidade nacional, fruto de descompasso entre a consciência política e a consciência literária.

Foi a primeira articulação verdadeiramente nacional da literatura brasileira,, nosso primeiro sistema literários “orgânico”, como o define Antonio Candido, dotado de consciência ideológica e de uma consciência intrínseca, programática, de sua brasilidade.
E nele, destacou- se Alencar,  o mais empenhado na criação de uma língua literária brasileira — a mais bela conquista do Romantismo — e no fomento/sedimentação de uma nacionalidade estilística e tramática na literatura que então se fazia. Pois só numa língua nacionalizada a literatura conseguiria atualizar e fazer evoluir seu potencial criativo e de interpretação da realidade social e humana  numa perspectiva autentica e essencialmente brasileira.
Quando se deu a publicação de Cinco minutos, a primeira obra ficcional de Alencar, o público brasileiro, já completamente habituado à leitura de romances, concedeu à novela “grande acolhida, enorme simpatia”,registram as notícias da época. Ao entrar para o cenário da produção cultural brasileira, ombreado com os poucos escritores que se dedicaram a produzir narrativas brasileiras — Teixeira e Sousa (O filho do pescador), Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha),  Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias) — Alencar percebeu logo que daria grande contribuição  à cultura  nacional se conseguisse produzir histórias que refletissem o máximo de nossa realidade psíquica e social: o que obviamente não acontecia com os romances importados. Procurou escrever romances que captassem a sensibilidade artística brasileira e que fossem, ao mesmo tempo, moldando  nossa percepção do real, ensinando-nos a apreciar as conformações gerais de nossa natureza, história, sociedade, cultura –e  fermentou e fomentou um processo que iria abrir o caminho para as grandes obras de Machado de Assis, Raul Pompéia,  Aluísio Azevedo.
 Ao contribuir intensamente para um processo de afirmação nacional, o Romantismo em sua última fase, mercê de evolução rápida mas firme, trocou a mística indianista, de cunho ideológico conservador,pela militância liberal — da qual o romance urbano de Alencar pode ser considerado expressão, no que tange a crítica política, social e econômica, o registro de valores comportamentais dissociados do ‘moralmente’ aceito.
Nesse particular, para exemplificar e ilustrar um processo evolutivo, a par da figura inicial do “índio cavalheiresco” — o mito heróico fomentado por Alencar, derivado da ‘cultura’ literária indianista que vinha desde a fase colonial — engendrado foi também um mito sentimental: a mocinha brasileira, romântica, terna. Esse perfil de heroína, cheia de efusão amorosa, incorporava-se à paisagem social da Corte e celebrava o ‘amor-destino’, vencendo os obstáculos do destino e da sociedade  — situando esse motivo romântico na moldura sensata e realista do meio burguês, sem personagens  das camadas populares, retratando o casamento como garantia social, os happy endings enaltecendo o sentimentalismo e confirmando a ordem social.
Alencar,o mais lido romancista do País,  assegurou à novelística e ao romanesco  brasileiros seu primeiro grande vôo literário, e seus “perfis de mulher” — em Cinco minutos e A Viuvinha, em Lucíola, Diva e Senhora — deram nova vida ao  romance urbano brasileiro. Todo ele, mister frisar, ambientado na cidade do Rio de Janeiro.
 De forma incipiente nas duas  primeiras novelas, mais consistentemente nos romances seguintes, Alencar aprofunda a significação humana da história de amor. O conflito psicológico em Cinco minutos e em A Viuvinha se mantém ‘raso’, conforme (não poderia deixar de ser) o ideário convencional e conservador da sociedade  de então — ambos, estórias da moça que conhece um grande amor : a evolução dissociativa desse molde e o aprofundamento da densidade psicológica viriam nas três  obras subseqüentes.
Alencar, como nenhum outro, emblematiza o início, evolução, pujança e fim do Romantismo brasileiro. Ainda que ‘didaticamente/academicamente’ o encerramento do processo da literatura romântica, e advento do início do Realismo/Naturalismo, seja oficializado pela publicação do ‘romance de transição’ de Machado de Assis, Iaiá Garcia , em 1878 ( a transição contística machadiana está em Papéis avulsos, de 1881), muitos estudiosos na verdade situam –no em 1877, ano da morte de Alencar, em justa homenagem a um dos maiores nomes da literatura brasileira.

Ode ao amor em perfis femininos

Em meados do século XIX,  as mulheres da burguesia costumavam socializar as obras literárias por meio da leitura coletiva de jornais. Enquanto bordavam, em grandes salões,  se emocionavam com o simples e mágico ato de ler em voz alta e por meio dessas leituras, autores românticos penetraram na sociedade através desse público ouvinte para quem, gradativamente, se habituavam a escrever. Esses momentos exalavam prazer, soluços, risos,  sentimentos provocados pelos romances românticos e seus personagens marcantes. José de Alencar, ao  desvelar as várias faces de um Brasil recém independente, em busca de suas singularidades para delinear e sedimentar a identidade nacional, iniciar os brasileiros no conhecimento da realidade de seu país  adentrava na intimidade burguesa da cidade do Rio de Janeiro.
Em função da ânsia de ganhos que começa a prevalecer na mente das pessoas, para um certo segmento da sociedade surge o sentimento de frustração, de perda de valores, já que o homem começa a degradar-se para conseguir uma boa posição social. E nisso reside o cerne do teor crítico imprimido por Alencar , em maior ou menor grau, a seus romances urbanos, —como por exemplo as vicissitudes do personagem Jorge em A Viuvinha, que “(...) começou a viver essa vida dos nossos moços ricos, os quais pensam que gastar o dinheiro que seus pais ganharam é uma profissão suficiente para que se dispensem de abraçar qualquer outra, essas esterilidades a que se condenam homens que, pela sua posição independente, podiam aspirar a um futuro brilhante (...),  essa descuidosa existência da gente rica, apesar do novo progresso econômico da divisão do trabalho, que multiplicou infinitamente as indústrias, e por conseguinte as profissões, a questão ainda é bem difícil de resolver para aqueles que não querem trabalhar (...),  em uma época em que dominava a vertigem do suicídio”
 No contraponto a esse cenário de realidade social, se Alencar o denuncia e critica, não deixa de, como todos os românticos e seu ideário ficcional, pretender o predomínio da emoção sobre a razão, a liberação dos sentimentos dos sentimentos, a redenção e superação do materialismo pelo amor, a resistência  “a todas as seduções do mundo, sucumbir à força poderosa do amor puro e desinteressado”--  insiste na idéia de que o amor é um instrumento eficaz contra a despersonalização capitalista.
Soube ele, com enormes talento, competência e discernimento, desnudar o modo de vida na Corte, retratar  o cotidiano do Segundo Império , denunciar a burguesia negociando casamentos e amor, dramas morais e afetivos, tipos femininos imersos nos problemas de amor e do casamento, sob o manto do  patriarcalismo ou do matriarcado, colocando os costumes morais, sociais e políticos da sociedade burguesa de então como  o centro do romance urbano — mas sob enredo sempre idealista, concebido segundo a imaginação e o sentimentalismo romântico.
Alencar jamais perde a visão de conjunto de sua narrativa. Se a ação de seus personagens faz surgir acontecimentos que parecem bordejar o inverossímil, isso se dá por um momento fugaz, como brilhante recurso narrativo — afinal, alerta ele tanto em Cinco minutos como em A Viuvinha, “é uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história, e não um romance ; não escrevo um romance, conto-lhe uma história. A verdade dispensa a verossimilhança”. E tudo acaba por explicar-se convenientemente,  e o leitor termina ‘pacificado’.
 Este processo de compensação,  que permeia toda  sua obra, começou a ganhar foro de estilo (o ‘estilo Alencar'’) a partir justamente das primeiras   experiências de romance urbano (seus “ romancetes”). Em ambos utiliza o expediente, inédito à época, da figura da “prima D...”, condutora do desenrolar das intrigas das novelas, interlocutora privilegiada, nomeada como responsável pela fé depositada no escritor , com quem inclusive o autor ‘dialoga’, a la Machado de Assis (bem antes deste).
Nessas duas novelas precursoras, a história em contraposição ao romance, inovador ainda é o elemento metaliterário utilizado em Cinco minutos quando envia à ‘prima’ a cópia de um hipotético manuscrito realizada por ele e Carlota  "nos longos serões das nossas noites de inverno " — a  ficção dentro da ficção, inaugurando elemento somente muitos anos depois utilizado na literatura brasileira.
O narrador em ambas as novelas,como quase todo narrador romântico, procura criar a impressão de que o seu relato é verídico: teve existência real antes de assumir a forma literária. Esse narrador, enfim, confunde-se com um outro "eu" inventado por  Alencar em seus romances urbanos,  a tonalidade de voz assumida na transmissão de Cinco minutos e A Viuvinha, depois em Lucíola, é semelhante à de Senhora  —todos muito diferentes do acento narrativo de Iracema ou de O guarani.
Nas duas obras iniciais Alencar põe mais alta a essência da feminilidade, mas  traçando o perfil da “mulher cordial,romântica, idílica”—distinto da “mulher cerebral”, depois desenhado em Lucíola e mais adiante  com rigor e plenitude em  Senhora— perfil inerente tanto a Carlota  de Cinco minutos como a Carolina  de A Viuvinha.
Em Cinco minutos, o narrador em primeira pessoa — relatando  sua estória em carta à “prima D...” —é um típico ‘herói romântico, apaixonado, arrebatado por um amor irresistível’ : um exemplo clássico do Romantismo ao mostrar  ‘o amor puro, casto, duradouro e curativo, sentido por duas almas gêmeas perfeitas, com o destino interpondo-se no caminho e resolvendo-se no final’.Em A Viuvinha, narrada  em terceira pessoa —também à “prima D...” —  o personagem principal é moldado, a princípio  um pouco distante daquilo que se espera de um herói tipicamente romântico : Alencar desfila seus olhos pelas mazelas morais que são fruto do  capitalismo nascente e do culto ao perdularismo advindo da acumulação financeira, mas  como homem de seu tempo , não dá a Jorge as dimensões funestas dos personagens que seriam típicos mais tarde no Realismo, espicaçando-lhes os desvios de comportamento, ao contrário acaba por redimi-lo.
                                                                                                                                  








 































sexta-feira, 6 de março de 2015

Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro

                                                                         Introdução

Dizem, e eu creio, que a nossa comissão científica, ao tempo em que suspenderam a subvenção, já se achava quase a ponto de desorganizar-se por si mesma, e sustentam que os seus trabalhos não corresponderam às despesas feitas; parece-me, porém, que em tal caso o mais acertado seria procurar remover os embaraços que a amesquinhavam, dar-lhe mais seguras condições de harmonia e de vigor, e fazê-la continuar em zeloso
labor, mesmo porque as mais avultadas despesas estavam feitas, e a verdadeira economia aconselhava aproveitar o dinheiro empregado e a experiência do noviciado dos exploradores.
Mas entendeu-se que isso de comissão científica era peta, e acabou-se a história.
Devemos contentar-nos com as comissões dessa natureza que têm sido e hão de ser mandadas ao Brasil por nações estrangeiras; nós não temos a menor necessidade de conhecer a nossa própria casa: basta que os estranhos nos ensinem o que ela é e o que temos dentro dela.
Afirmam que a tal comissão importou e devia importar um enorme desperdício dos dinheiros públicos; porque o único resultado que prometia era alguma coleção de bichinhos para o museu nacional, que provavelmente também se entende que nos faz carregar com uma despesa de luxo. Vê-se daí que os nossos homens práticos aborrecem a história natural, que é, segundo eles, um gênero especial de poesia. Mas a comissão científica tinha ainda a incumbência de muitos outros e importantíssimos trabalhos, e, portanto, não procedia àquela observação, que, aliás, eu consideraria muito justa; porquanto, era puerilidade indesculpável tomar-se tanto incômodo para se arranjar lá por aqueles desertos uma coleção de bichinhos, quando aqui mesmo da capital do império se poderiam organizar, até entre os próprios homens práticos e os nossos grandes políticos, umas poucas de coleções de bichos de proporções colossais que ainda
não foram classificados pelos naturalistas.
Mas, repito, não é das províncias centrais e longínquas que pretendo falar. Dessas temos notícia de que fosforizam as suas eleições periodicamente, e é o que basta. Quanto ao mais, representam um mundo que ainda está à espera do seu Colombo; e não admira que assim exista ignorado, quanto é certo que nem conhecemos bem a cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro.
Note-se que esta incúria seria escusável ao montanhês de Minas, ao guasca do Sul, ao caipira do Paraná; o que, porém, muito mais surpreende é que os próprios cariocas não estejam ao fato da história e das crônicas da capital, de que tanto se ufanam.
Disse um escritor francês, cujo nome agora me não lembro, que entre os franceses são os parisienses os que conhecem menos Paris. No Brasil não se pode dizer coisa semelhante, porque os provincianos, como os cariocas, desconhecem do mesmo modo a nossa boa Sebastianópolis.
Se no outro tempo era grande essa antipatriótica falta de curiosidade, agora é muito pior: os paquetes a vapor e a facilidade das viagens ao Velho Mundo tiram-nos à vontade de passear os nossos, e é mais comum encontrar um fluminense que nos descreva as montanhas da Suíça e os jardins e palácios de Paris e Londres do que um outro que tenha perfeito conhecimento da história de algum dos nossos pobres edifícios, da crônica dos nossos conventos e de algumas das nossas romanescas igrejas solitárias, e até mesmo que nos fale com verdadeiro interesse dos sítios encantadores e
das eminências majestosas que enchem de sublime poesia a capital do Brasil.
Hoje em dia uma viagem a Lisboa é coisa mais simples do que um passeio ao Corcovado.
Entretanto, eu estou convencido de que se podia bem viajar meses inteiros pela cidade do Rio de Janeiro, achando-se todos os dias alimento agradável para o espírito e o coração.
O passado é um livro imenso cheio de preciosos tesouros que não se devem desprezar; e toda a terra tem sua história mais ou menos poética, suas recordações mais ou menos interessantes, como todo o coração tem suas saudades. A capital do Império do Brasil não pode ser uma exceção a esta regra.
Vamos dar princípio hoje a um passeio pela cidade do Rio de Janeiro? É um convite que faço aos leitores do Jornal do Commercio. Se o passeio parecer fastidioso ou monótono, não haverá o menor inconveniente em dá-lo por acabado no fim da primeira hora; se agradar, continuaremos com ele até... até... quem sabe até quando? Provavelmente conversaremos de preferência a respeito dos tempos que já foram e, portanto, não é preciso que nos lembremos já do futuro, marcando o fim da nossa viagem amena.
Vamos passear.
Não se incomodem com os preparativos de uma viagem, que talvez seja longa: eu tomo isso à minha conta. Não tenham medo de se verem metidos por mim dentro dos ônibus, gôndolas ou carros da praça; desejo muito dar o maior prazer que for possível aos meus companheiros de passeio, para condená-los a semelhante martírio.
Se algum dos meus leitores é, por infelicidade, paralítico, se algum outro quebrou as pernas na luta, no litoral de dezembro último em qualquer dos pontos do império onde a Vestal foi festejada com o emprego da força material, se ainda outro está tão atarefado com os cinco ou seis cargos em que se consagra ao serviço da pátria que não tem tempo de dar um passo na rua, ainda esses mesmos não serão privados de passear comigo. Não há incompatibilidade que afetem o nosso passeio. Não preciso pedir o braço, apenas peço a atenção dos meus leitores. Eu passearei escrevendo, eles lendo, e ainda assim – oh! fatal idéia! – pode bem ser que eles se fatiguem primeiro do que eu.
Acendamos pois um Havana (da Bahia), ou um Manilha (do Rio de Janeiro), e... passeemos.
Excluamos do nosso passeio toda a idéia de ordem ou sistema: regular os nossos passos, impor-nos uma direção e um caminho fora um erro lamentável que daria lugar a mil questões de precedência em que, sem dúvida, os frades barbadinhos seriam os primeiros a fazer ouvir bem fundados protestos em nome da igreja de S. Sebastião.
Independência completa da cronologia! Um passeio cronológico obrigar-nos-ia a começar dando um salto do Pão de Açúcar ao morro do Castelo, e um salto desses somente com ligeireza e com as pernas dos volantins políticos se poderia dar.
Passeemos à vontade: a polícia o permite e as posturas da ilustríssima Câmara o não proíbem.
Estamos no n
osso direito: passeemos.

                                                         O Palácio Imperial

Eis-nos em frente do palácio imperial, no largo do Paço.
Por onde viemos para chegar aqui, e como nos achamos de improviso neste lugar, é o que não importa saber, nem eu poderia dizê-lo.
Consolemo-nos desta primeira irregularidade do nosso passeio; além de nós, há por esse mundo muita gente que se acha em excelentes posições sem saber como. O nosso século é fértil em milagres desta ordem.
Tem-se visto no correr dele até quadrúpedes que voam.
Paremos agora um pouco, e conversemos por dez minutos.
É justo que estudemos com interesse a história do palácio imperial; antes, porém, cumpre dizer duas palavras a respeito do lugar em que ele está situado.
Esta praça tem mudado tanto de proporções como de nome, e ainda mais vezes de nome do que de proporções.
A sua extensão primitiva não a posso determinar; no último quartel, porém, do século passado, o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa deu-lhe regularidade e limites positivos, fazendo construir um belo cais de cantaria granítica à imitação de outro feito em Lisboa pela Marinha Real, e ficou então a praça formando um quadrilongo de setenta e cinco braças de comprimento sobre quarenta e cinco de largura. Esse cais tinha defronte do palácio uma rampa destinada a facilitar os desembarques, e de espaço a espaço, assentos de pedra. Tudo isso desapareceu desde 1841 ou 1842, por ordem da Câmara Municipal, que projetou construir outro cais mais ao mar. Lá se foram, porém, dezenove anos, e ainda estamos à espera dele!
Entretanto, as obras de aterro têm já estendido bastante a praça, de modo que agora se acha não pouco afastado da praia o chafariz, que, levantado primeiro no meio daquela, fizera o vice-rei Luís de Vasconcelos substituir por outro à face do mar.
Não nos queixemos da nossa edilidade: ela já fez o que pôde, e que infelizmente se reduziu, pouco mais ou menos, a coisa nenhuma.
Lembra-me, porém, que para começo de trabalhos do novo cais se construiu uma trincheira de tábuas, seguras por pregos que tinham as pontas para o mar e as cabeças para terra, e o mar, aproveitando-se daquela bem ordenada pregadura, em um dia em que fez mareta, atirou com as tábuas à praia, de maneira que ensinou à câmara municipal que até os mesmos pregos devem saber onde põem os pés e onde têm as cabeças.
Não tenho ainda certeza de que esta lição aproveitasse.
O governo tomou a seu cargo a obra do novo cais, e há esperanças de que mais diligente se há de mostrar; no entanto, as dimensões da praça excedem já muito às que tinha no fim do século passado e por não poucos anos conservou.
Falei das proporções. Agora tratarei dos nomes.
A praia em que se termina esta praça teve primitivamente o nome de – praia da Senhora do Ó – e hei de em breve dizê-lo porquê; mas o nome mais antigo dos que tem tido esta praça é lugar do Ferreiro da Polé; a origem de semelhante denominação perde-se na noite dos tempos. Quer me parecer que não podia ser simpática.
No fim do século décimo-sexto, ou no princípio do seguinte, chamou-se praça do Carmo, porque era dominada pelo convento levantado pelos carmelitas.
De 1743 em diante, recebeu o nome de terreiro do Paço, em razão de se haver construído nela a casa dos governadores, e os carmelitas não brigaram com o conde de Bobadela por essa mudança de denominação, porque, enfim, palavras não adubam sopas, e frades não fazem questões de pouco mais ou menos.
Por último, largo do Paço ficou sendo chamada. Não aposto, porém, que conserve por muito tempo o mesmo nome, a menos que o Estado se resolva a levantar outro palácio no mesmo lugar, pois o que existe, desde alguns anos recebeu do cupim formal intimação para procurar um substituto.
E antes dessas instantes intimações do cupim, já ao dever e ao patriotismo cumpria ter lembrada a necessidade urgente de uma tal substituição.
Este palácio que estamos vendo nem tem no seu aspecto exterior bastante majestade, nem em suas disposições e ornatos interiores suficiente magnificência para mostrar-se digno do chefe do Estado e digno da nação. Há na cidade casas de particulares que incontestavelmente ostentam mais riqueza e oferecem mais cômodo do que ele.
Nas monarquias, o esplendor da majestade reflete sobre toda a nação, e a casa do monarca, o palácio do chefe do Estado, que atrai todas as vistas, que abre suas salas aos representantes das nações estrangeiras e a todos os cidadãos, deve ser grandioso como a idéia que representa.
Não me digam que o Brasil não tem dinheiro para levantar um palácio. Oh! se tem. O patronato acha sempre recursos financeiros para fazer presentes à custa da pátria amada, e só o dever e o patriotismo terão sempre de esbarrar diante do monstro chamado déficit.
O corpo legislativo não pode continuar a descuidar-se desta evidente necessidade. Além de tudo, o palácio está arruinado e a nação deve oferecer ao seu primeiro cidadão um edifício que, pelo menos, se adivinhe logo o que é, quando se olhar para ele.
Comecei falando mal do palácio, antes de descrevê-lo e de contar a sua história.
Vou emendar o meu erro.
Para um palácio, este envelheceu depressa, pois que apenas conta cento e dezoito anos de idade, tendo sido, portanto, construído quase dois séculos depois da fundação da cidade do Rio de Janeiro.

(...)

quarta-feira, 4 de março de 2015

Espelhos literários : o Rio de Janeiro refletido

Um grupo espetacular de escritores; um conjunto de obras excepcionais, canônicas -- Memórias de um sargento de milícias,, de Manuel Antonio de Almeida; Casa Velha, de Machado de Assis; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; A alma encantadora das ruas, de João do Rio – verdadeiros,exuberantes  retratos  do Rio de Janeiro,espelhados entre si e com a cidade.
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      Caso exemplar de simbioses  –  magníficas criações literárias de grandes escritores, que a rigor, mostram muito mais do que o geográfico-urbano-espacial elo comum entre o Rio e notáveis literatos: trazem outros elementos de relações, encadeamentos e ilações -- estas tanto de identificação quanto de  contraposição -- entre  quatro obras, seus autores e... seus  personagens.
        Qual  espelhos que ao mesmo tempo em que refletem ‘invertem’ imagens, as obras em tela guardam e mantêm entre si identidades e contraposições, similaridades e contrapontos,intertextualidades e cotejamentos.
         Primeiramente, vale observar que, sob a órbita do cenário carioca da segunda metade do século XIX e duas primeiras décadas do século XX  brasileira, as obras  guardam,entre cada um dos escritores de cada uma delas, o importante vínculo de encadeamento sequencial de ciclos cruciais da  historiografia literária brasileira , a saber:  Memórias de um sargento de milícias  como exemplar do Romantismo ( abalizadas análises projetem a obra de  Manuel Antonio de Almeida  na verdade como um antecipador do Realismo) ; Casa Velha,  como (especial) representante do Realismo (malgrado,não apenas  Machado de Assis poder ser considerado, e o é,acima de todos os ciclos e rótulos e chancelas, como ainda a interpretação  deflagrada pela crítica e ensaísta Lucia Miguel-Pereira em Machado de Assis: Casa Velha,1944, interpretação equivocada e depois revisada e corrigida, de ter sido a obra escrita muito antes de 1885, quando foi  publicada).; Triste fim de Policarpo Quaresma,romance expoente do Prémodernismo,de que Lima Barreto foi inconteste epígono, de resto ciclo que também abrigou João do Rio e sua ode à "alma encantadora das ruas"-- obra que assume  papel bastante peculiar,qual  uma 'apresentadora' do cenário urbano onde se desenrolam as histórias e tramas narradas  nas  outras três obras.
       A par de ilações concretas de cunho intelectual e literário entre os escritores e as obras em tela,  mencionemos  a existência efetiva de relações de ordem pessoal – amistosas, num caso; de franca antipatia  mútua,em outro : enquanto Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis guardavam excelente relacionamento e até afinidades  afetivas entre si (mas também marcantes ilações literárias, como se verá)– Almeida,.além de ter sido  chefe de Machado na oficina da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de tipografia,  introduziu-o  na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de Paula Brito e foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado, inclusive,dedicou a ele o (importantíssimo) artigo “O jornal e o livro”, publicado em janeiro 1859 (ele, com menos de 19 anos e meio) no Correio Mercantil  –  de outro lado, Lima Barreto e João do Rio se antegonizavam, nutriam forte animosidade um pelo outro.E entre Machado e João do Rio deu-se  curiosa episódio : Machado nunca respondeu ao questionário que,em 1899, João lhe submetera  para a coletânea, de entrevistas com diversos escritores, O momento literário, e acabou não aparecendo– não se sabe até hoje porque – na obra, publicada em 1904..
         Em outro viés – aqui de natureza digamos ‘filosófica’ -- em Machado de Assis e Lima Barreto as diferenças e divergências entre ambos escondem proximidades e até mesmo identidades bastante significativas (veiculei  estudo a respeito, exatamente com esse título,  “Diferentes, divergentes, mas próximos muito próximos, no qual promulgo Lima Barreto e Machado de Assis como verdadeiros, natos, ‘parentes literários’. Ainda que bastante diferentes, ambos muito próximos de várias maneiras – essencialmente semelhantes em concepções filosóficas, temas, influências, pontos de vista,mesmo que sob formas,modos e discursos distintos. De modo convergente, mas de forma  divergente, analisaram os cenários políticos, históricos,institucionais,sociais,culturais de suas épocas e a existência do homem --: Machado, privilegiando as nuances, dissecando-o em sua essência,revelando sutilezas, contradições e ambigüidades psicológicas; Lima, sem linhas e focos enviezados, desnudando suas fraquezas, insuficiências, submissões, condições sociais. Se Machado inaugurou o psicologismo na ficção brasileira, Lima introduziu o tema da incomunicabilidade, do isolamento existencial e social.)
       Por outro lado, notáveis – e sem o serem inusitadas ou surpreendentes - são as  intertextualidades, quer de interações quer  de contraposições, explícitas ou=implícitas, entre as quatro obras e os quatro autores. ’Sob um viés, Memórias de um sargento de milícias irradia genericamente para Casa Velha e para Triste fim de Policarpo Quaresma um vetor de estado e posturas de autoritarismo, concreto ou latente: o autoritarismo ditatorial de Vidigal, em Memórias...  é do mesmo naipe do de Floriano,como tratado em Policarpo Quaresma – de que aliás é o personagem principal, sem dúvida – e de outro tom no autoritarismo doméstico,familiar de d. Antonia em Casa Velha.
        Leonardo Filho, Lalau e Policarpo Quaresma, cada um a seus modo, feitio e circunstâncias, são personagens que reagem a pressões, por vezes intoleráveis, de uma sociedade dominadora, patriarcal, ou de um ambiente matriarcal(como em Casa Velha) – de resto, também  o que se dá com os personagens de Lima Barreto, no geral de sua ficção : Leonardo Filho e Policarpo agem, mas sofrem as sanções da sociedade e do sistema político -- para o primeiro,ainda colonial; para o outro, já republicano -- que os sufocam e ferem; Lalau, de um imperial âmbito  familiar,doméstico, e de  esfera social.
Quer em Memórias de um sargento de milícias, em Casa Velha, quer em Triste fim de Policarpo Quaresma, personagens, situações,tramas – e os autores – ‘subjugados’ ao Estado,onipresente, seja “no tempo do rei”, seja ‘sob o manto imperial’(em 1839),seja sob a ‘mão pesada da República’.
        Não chego a dizer e sustentar que Memórias de um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida sejam a obra e o autor capitais, centrais, deste conjunto, mas podem ser vistos como um pólo gerador de eixos de ilações e recorrências com as demais obras e autores. Antonio de Almeida e sua obra --  emblemática  de uma inflexão temática, tramática e estilística no romantismo literário brasileiro -- ‘interagem’ com Machado de Assis  não só na antecipação do Realismo, mas também, e especificamente,no que Memórias de um sargento de milícias --‘anárquica’, ‘picaresca’(conotação, na verdade, cunhada por  Mario de Andrade , é questionada por Antonio Candido,em seu primoroso ensaio “Dialética da malandragem”, para quem Leonardo  Filho antes de ser um ‘pícaro’ é, sim, o primeiro malandro da literatura brasileira . No entanto, para ‘simplificar’ e evitar estender o que não é propósito deste comentário, aceitemos e adotemos essa  designação mesmo.) -- prenuncia Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)– ‘inovadora’, ‘revolucionária’, marco da inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário brasileiro,e da qual – convém notar - Casa Velha(1885),na produção romanesca machadiana,  é seqüente.


     Memórias de um sargento de milícias  contrasta com a ficção brasileira do tempo – como Casa Velha difere, no enfoque e no tom e timbre, da ficção realista de sua época e inclusive, e em especial, das obras romanescas de Machado de Assis a partir da década de 1880 (Memórias póstumas de Brás Cubas; Quincas Borba; Dom Casmurro; Esaú e Jacó; Memorial de Ayres)
“O tempo do rei’, i.e. de d. João VI, em que se dá a história de Memórias de um sargento de milícias,é citado e adquire significância especial em  Casa Velha, no que determina como fulcro inicial  na dinâmica da trama a intenção do padre-narrador em escrever a história de Pedro I, inspirado  numa Memória de d. João VI,de autoria do pde. Luís Gonçalves dos Santos, o pde.Perereca. Vale dizer, a obra que o cônego em Casa Velha  propõe-se a escrever é,no âmbito ficcional, ‘decorrente’ da vivência no tempo em que decorre Memórias de um sargento de milícias.: nesta, a estrutura da trama, inerente a história política entre 1808 e 1822, faz o  pano de fundo histórico da obra de Manuel Antonio de Almeida  terminar onde começa o da obra de Machado de Assis.
         Mais do que ‘picaresca’[sic] ou outra conotação que se lhe atribua,  Memórias... é antes de tudo, um romance social – como aliás são os de Lima Barreto.  Mas é também uma história do amor de Leonardo Filho por Luisinha – esta, ao contrário, de Lalau, de Casa Velha, e de certo modo de Olga, de Policarpo Quaresma,  é mocinha burguesa, com herança e meneios dissimulados. A obra de Antonio de Almeida também retrata uma família – Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, aliás  o núcleo central do elenco de protagonistas, como o são em Casa Velha d. Antonia,Lalau e Félix. Na obra de Machado de Assis há a contraposição ao mundo patriarcal representada pela figura de d. Antonia, e em dada escala por Lalau, não de todo submissa às regras sociais (embora de comportamento dentro da ‘ordem’); em Memórias de um sargento de milícias personalizada essa contraposição,e confrontante com a ordem estabelecida, por Leonardo Filho: ele e Lalau são dotados, cada um per se, de elementos simbólicos, como  personagens –representantes das classes não-dirigentes [e caberia aqui uma especulação- claro que numa escala ‘surreal’ : Lalau  poderia se interessar,e vice-versa, por Leonardo?...]
        Por sua vez, tanto Memórias de um sargento de milícias quanto Triste fim de Policarpo Quaresma, talvez com sinais invertidos, representam metáforas sobre o destino do Brasil  como Nação. A impressão de realidade comunicada pelas obras decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou "destino" das pessoas naquelas sociedades;  Manuel Antônio, guardadas as devidas proporções, mantém em  comum com os autores realistas: a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade --exatamente como Lima Barreto..
           Ambas as obras e seus protagonistas  como veículos de hilariantes sátiras sócio-políticas, das instituições, Policarpo Quaresma como uma espécie de  Leonardo Filho ao contrário : se aquele  é modelo do patriota, este é o antipatriota. Enquanto Leonardo Filho sofre a repressão de uma sociedade forte,preocupada com a ordem pública,  Policarpo convence-se da necessidade de um governo forte -- o que o leva a apelar ao poder de Floriano Peixoto e alistar-se no exército florianista.
           No geral e em essência, o universo dos personagens da obra de Antonio de Almeida – empregados, subempregados, desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados, etc – é o universo ficcional de toda a obra de Lima Barreto.Os dois autores, ‘contestadores’ da ordem – não apenas numa,digamos, ideologia de suas respectivas tramas e temas ficcionais, mas também  na forma literária: as escrita e linguagem ficcional imprimidas em Memórias.guarda identidades com as escrita,estilo e linguagem literária de Lima Barreto, ambas coloquiais,despojadas,fluentes,lastreadas na oralidade.(“anti-nefelibatas”, segundo Lima).
          Em Triste fim de Policarpo  Quaresma – como de resto nos demais romances  e novelas barretianos (Recordações do escrivão Isaias Caminha e Morte e vida de M.J. Gonzaga de Sá; em Clara dos Anjos) – há um pathos trágico, da derrota final de Policarpo; em Memórias de um sargento de milícias , ao contrário, dá-se um aparente


pathos ‘épico’, de vitória, Leonardo Filho feito por fim sargento de milícias. Se Leonardo Filho é um ‘herói atuante’, picaresco [ sic : conservemos a conotação ‘picaresca’,vá lá...] , ‘thorminiano’ (de Lazarillo de Thormes), Policarpo (bem como Isaias Caminha – e similarmente ao machadiano  ‘homem de espírito’) é um autêntico ‘herói carlyleano’,um ‘herói solitário’, ‘intelectual’ lyleano’– per se  um flâneur. Incorporado de Carlyle (uma das maiores influências intelectuais em Lima),  o flâneur  barretiano – foi Lima  o introdutor desta figura na literatura brasileira – que é um  flâneur dramático,debilitado, andarilho decadente, está no flaneurismo ,de perfil e atuação completamente contrários, de João do Rio, em seus freqüentar e retratar as ruas da cidade.
       Identificação e ‘entrocamento’ entre Lima e João – não obstante as antipatia  e animosidade de um pelo outro no campo pessoal --  que não se dá apenas nesse terreno subjetivo de comportamento social mas também em vívidos aspectos comuns da realidade de origem e de vivência de cada um.
         Ambos  naturais e falecidos no mesmo Rio de Janeiro – João do Rio nascido em 1880, Lima Barreto em 1881(aliás, ano de publicação de Brás Cubas,marco ficcional machadiano); João, morto em 1921, Lima em 1922 : um ano a separá-los em seus nascimentos e mortes – Lima oriundo de família modesta, de funcionário público empregado pela Monarquia, amante de seus ‘adoráveis subúrbios’,rebelde e automarginalizado; João, de família de classe média, abolicionista,positivista, republicana, dândi  integrando-se  gradativamente às altas esferas da sociedade e às  elites ;  os dois vividos na mesma cidade,então em ebulição, pela pretensa modernização, ambos sob a mesma República, João, entusiasta incondicional, Lima, crítico visceral.
          João do Rio, sempre atuando na ‘imprensa burguesa’, em grandes jornais,prestigiado e famoso, foi até mesmo empresário jornalístico;; Lima Barreto, embora iniciando no portentoso e  poderoso Correio da Manhã (acida e demolidoramente criticado em Recordações do escrivão Isaias Caminha—aliás, também João do Rio, impiedosamente satirizado pela “futilidade de sua pose”), sempre preferiu a  imprensa libertária, alternativa, contestadora.. O João cronista, autêntico seguidor da ‘arte das transições’ e da ‘circularidade na crônica’ de Machado de Assis (espécie de marca registrada, entre outras características marcantes, a “arte das transições” faz parte da  própria forma narrativa,,  unindo tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado  surpreendente,cujo trajeto é ‘amenizado’ para os leitor , primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral  muitas vezes nem percebida de todo) : Lima, praticante consciente de  um novo estilo, contundente, fomentador,para não dizer criador, da crônica contemporânea. João do Rio, criador do colunismo social, um olhar no mundanismo, antagoniza e confronta Lima Barreto, comentarista político, sempre no debruçar nos aspectos  sociais.
         Mas, embora dotados de ideologias, posturas, visões e interpretações nada convergentes, ambos profundamente interessados na cidade e no seu habitante. É nesse sentido e com essa índole que João do Rio registra, apregoa, expõe, dissemina e exalta a  “alma encantadora das ruas” da cidade – que por sua vez está também nos becos,ruelas,ladeiras, por onde Leonardo Filho e os personagens transitam ‘picarescamente’[sic] na obra de Manuel Antonio de Almeida e onde Lima Barreto constrói e ambienta todas suas tramas ficcionais. Os mesmos  contingentes sociais da cidade povoam literariamente as obras dos três escritores.

 Relevante tal conjunto,
a exibir exemplares claros da pujança literária do Rio de Janeiro, a extraordinária capacidade criativa de alguns de seus mais importantes escritores.                                                                                                                               












RIO DE JANEIRO, CIDADE LITERÁRIA

com  fito e mote registrar a natureza do Rio de Janeiro como autêntica "cidade literária" -- ao mesmo tempo referenciar e reverenciar a cidade em seus 450 anos de existência.
                                                               ___________________
excelente oportunidade para reunir escritores , por naturalidade de origem ou por identidade e afinidade literárias, inerentes e ligados ao Rio -- criados, mantidos e perpetrados com ele vínculos eletivos, e efetivos, em tema, tramas, enredos, ambiência, personagens de seus escritos ficcionais e não-ficcionais: em muitos casos leitmotiv, na cidade e com a cidade se refletindo,eles e suas obras, qual um atraente sistema - ou ‘jogo’- de espelhos.
o elenco que aqui se desdobrará não oferece dúvidas de ser, por si mesmo, significativamente representativo da literatura carioca. nem todos dos autores são nativos da cidade : muitos, muitos mesmo, vindos de outras paragens no Rio se estabeleceram, nele produziram e construíram suas respectivas obras e vidas literárias, nele se tornaram cariocas de fato e direito.
perfil, ou ‘marca registrada’, exemplar, essa da cidade do Rio de Janeiro : acolher, abrigar, adotar migrantes intelectuais de praticamente todas as paragens , que para ela vieram , nele se estabeleceram, nele inspirados, nele ambientadas,ou a ele referenciadas, conceberam, idealizaram,criaram e produziram obras ficcionais e não-ficcionais, textos em prosa e em verso, contos e novelas, crônicas e peças teatrais,ensaios e registros memorialísticos, discursos e conferências; verdadeira urbe catalisadora, centrípetra, daí geradora de pujança e riqueza culturais para todo o país (e mesmo para o mundo).
[destaca Adolfo Caminha que “praticamente todos os maiores escritores brasileiros do século XIX” (cita nominalmente “José de Alencar, Gonçalves Dias, Castro Alves, Aluisio de Azevedo, Coelho Neto, Raimundo Correia, Araripe Junior, Arthur Azevedo,- todos nortistas”) encontravam-se no Rio].
natureza própria e ‘orgânica’, vocação histórica, o Rio de Janeiro reúne, de modo bastante taxativo, a essência da “cidade letrada”, conforme a acepção desenvolvida por Angel Rama – cidade oriunda da cidade-bastião, cidade-porto, sobretudo cidade administrativa, que tem “dentro dela outra cidade, que a rege e conduz, a cidade letrada, encravada em seu âmago, compondo um anel protetor do poder e executor de seus interesses e determinantes: uma plêiade de administradores, funcionários, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores intelectuais, todos que manejam a pena e as letras estritamente associados às funções do poder”.
característica que o historiador e ensaísta José Murilo de Carvalho identificou e situou parcialmente na origem “ortogenética” da cidade -- em contraposição à natureza histórica heterogenética de São Paulo -- e que veio a marcar o tipo de intelectual e modo de produção cultural gerados pelo Rio de Janeiro. a cidade ortogenética, sintetiza Carvalho, definida pela função política e administrativa, com grande peso do governo e do poder público, tem o Rio de Janeiro como paradigma; a proclamação da República teria reforçado ainda mais essa função política da então capital do país, fazendo grande parte da intelectualidade vincular-se de alguma forma à burocracia pública, em geral como funcionários do governo federal : contudo, tal fato não “introduziu necessariamente uma perspectiva governista na obra desses autores”, nem constituiu limitação à sua liberdade de criação; a quase obrigação que se impunha ao Rio de passar a imagem civilizada do país, preconizada pela República, não impediu seus intelectuais de compreender perfeitamente a realidade do país e da cidade, eliminando e extirpando possíveis contradições e bloqueios no caminho da criatividade, a cidade vindo a produzir literatura e cultura do mais elevado nível.
verdadeira cidade literária por excelência, pólo absorvente e irradiante, magnético e dinâmico, de geração e produção de manifestações, expressões, realizações, tendências literárias e culturais de todos os ciclos da literatura brasileira – do Romantismo, do Realismo e do Pré-modernismo -- sempre preponderante e prevalecente no cenário cultural brasileiro, a “cidade maravilhosa”, expressão criada por Coelho Neto em artigo de 28 novembro 1909 no jornal "A Notícia"prossegue em todos os tempos históricos a abrigar autores, naturais ou migrantes, cariocas ou radicados, produzindo literatura ímpar, eivada de alto quilate e afinada com a modernidade.
o papel da cidade na criação literária de escritores é tão incontestável, tamanha sua conotação, ou ‘força’ literária emanadas, que muitas e muitas páginas, muitos e muitos sites e portais, muitos livros, seriam necessários para registrar e reportar tamanha magnificência  do Rio de Janeiro, para a própria história literária do Brasil.