com fito e mote registrar a natureza do Rio de Janeiro como autêntica "cidade literária" -- ao mesmo tempo referenciar e reverenciar a cidade em seus 450 anos de existência.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Notícia sobre um gigante do Brasil

Ao lado de Coelho Neto e Olavo Bilac (e um tanto de Joaquim Manuel de Macedo), José de Alencar  não tem devidamente reconhecido seu  excepcional valor literário -- e até mesmo histórico-linguístico, no que tange à criação e defesa de uma “língua semântica e literária brasileira".
Hoje, felizmente, denota-se um  processo de resgate : dirimidas, almeja-se, todas as dúvidas a respeito da importância fundamental da obra ficcional  de Alencar  para compreensão do nacionalismo  na literatura brasileira, nacionalismo entranhado na empreitada cultural por uma  língua brasileira.
Nenhum  escritor brasileiro foi e é tão versátil e eclético como Alencar, autor de romances (urbanos, indianistas, históricos, de costumes ), novelas, teatro, poesia, ensaios, artigos jornalísticos, memorialística. Nenhum escritor elevou o Romantismo literário brasileiro a  escalas  quantitativas e qualitativas como ele. E quase nenhum de seus contemporâneos --  exceção de Machado de Assis e Joaquim Manuel de Macedo -- soube, qual Alencar, captar e retratar tão bem o tempo histórico-político-social-cultural  do século XIX, no País.

A vasta obra ficcional de Alencar abarca toda a realidade brasileira : o indianismo , presente O guarani, Iracema e Ubirajara ; o urbanismo – tendo a então Corte, instalada na cidade do Rio de Janeiro, como ambientação -- retratado por A viuvinha, Cinco minutos, Lucíola, A pata da gazela, Diva, Sonhos d'ouro, Encarnação,  Senhora ; o regionalismo, expresso em O gaúcho, Tronco do ipê, Til , O sertanejo; o ao romance histórico, com As minas de prata, A guerra dos mascates, Alfarrábios.

Além do romance urbano e do indianista, Alencar  ainda incorporaria outros aspectos do Brasil em sua obra.  Til, O tronco do ipê, O sertanejo e O gaúcho mostram as peculiaridades culturais da nossa sociedade rural, com acontecimentos, paisagens, hábitos, maneiras de falar, vestir e se comportar diferentes da vida na Corte: em O gaúcho a Revolução Farroupilha (1835/1840) serve como pano de fundo à narrativa; o enredo de O tronco do ipê traz como cenário o interior fluminense e trata da ascensão social de um rapaz pobre; em Til, o interior paulista é o cenário da narrativa.

Mas Alencar não se limitou aos aspectos documentais. O que vale de fato nessas obras é, sobretudo, o poder de imaginação e a capacidade de construir narrativas bem estruturadas. Os personagens são heróis regionais puros, sensíveis, honrados, corteses, muito parecidos com os heróis dos romances indianistas. Mudavam as feições, mudava a roupagem, mudava o cenário. Mas na criação de todos esses personagens, Alencar perseguia o mesmo objetivo: chegar a um perfil do homem essencialmente brasileiro.


Não parou aí a investigação do escritor: servindo-se de fatos e lendas de nossa história, Alencar criaria ainda o chamado romance histórico, no qual  aparecem  tramas narrativas de intensa movimentação. Nessa categoria estão Guerra dos mascates, As minas de prata e Os alfarrábios : em Guerra dos mascates, personagens ficcionais escondem alguns políticos da época e até o próprio imperador (que aparece sob a pele do personagem Castro Caldas);  As minas de prata é uma espécie de modelo de romance histórico tal como esse tipo de romance era imaginado pelos ficcionistas de então: a  ação passa-se no século XVIII, uma época marcada pelo espírito de aventura. Com o romance histórico, Alencar completava o mapa do Brasil que desejara desenhar, fazendo aquilo que sabia fazer: literatura.
 Alencar, nesse particular, é um  dos autores mais representativos para o estudo, na teoria literária, do “mapeamento do DNA literário brasileiro” (junto com Gonçalves de Magalhães e Joaquim Manuel de Macedo) : foi ele, segundo Wilson Martins, o primeiro a escrever  um romance realista no Brasil --  o lamentavelmente inacabado Exhomem. Para todos os efeitos, Alencar é considerado  "o maior paladino" da causa da identidade nacional, baseada no que chamou de "dialeto brasileiro", que queria nitidamente diferente da língua portuguesa -- questão esta que ele  sempre procurou abordar de forma também eminentemente política.
Optando por reproduzir realisticamente em seus romances o falar brasileiro, pouco a pouco vê-se obrigado a defender publicamente sua opção. No prefácio a Sonhos d'ouro , por exemplo, ele justifica ironicamente o porquê dessa língua autônoma: “a manga, da primeira vez que a prova, acha-lhe o estrangeiro gosto de terebentina; depois de habituado, regala-se com o sabor delicioso. (…) O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?”
O processo de emancipação cultural encontrou na língua um instrumento privilegiado de luta política, na qual Alencar tem papel de destaque, não só pelo exemplo concreto fornecido por seus romances, como, e sobretudo, pelo engajamento explícito que teve nas querelas e polêmicas que se seguiram com escritores portugueses, sobretudo José Feliciano de Castilho.
Até sua morte, Alencar utilizaria  em sua obra a língua portuguesa naquela modalidade que chamou de "dialeto brasileiro", e continuaria tentando, exaustivamente, explicá-lo e legitimá-lo ao longo de inúmeros prefácios, posfácios, artigos de jornais e revistas e em sua correspondência particular. "Entendo que sendo a língua instrumento do espírito, não pode ficar estacionária quando este se desenvolve", diz ele no pós-escrito à segunda edição de Diva . Língua e nacionalismo são os temas  abordados, e Alencar é enfático ao expor sua idéia de que a cada povo corresponde uma maneira própria de ser e de falar. Ignorá-lo, pensa ele, seria ignorar a História; seria desprezar a evidência do progresso e da diferenciação existentes em cada povo; seria --”e isto é o mais grave”, alerta --  distanciar-se do público que o lê.
Para dar compreensibilidade a esse "dialeto brasileiro", eivado de tupi, do qual é o falante número um, no posfácio à segunda edição de Iracema  afirma :  “(...) quando povos de uma raça habitam a mesma região, a independência política só por si forma sua individualidade. Mas se esses povos vivem em continentes distintos, sob climas diferentes, não se rompem unicamente os vínculos políticos, opera-se, também, a separação nas idéias, nos sentimentos, nos costumes e, portanto, na língua, que é a expressão desses fatos morais e sociais (...)”.
Alencar tinha, portanto, perfeita consciência de dois fatos: a língua era instrumento ideológico ; os brasileiros deveriam usá-lo em seu projeto de auto-criação histórico-literária, política e cultural. Um processo profundamente nacionalista e necessariamente proposital e não é possível, no Brasil pós-Independência, deixar de mencionar o uso da língua como arma ideológica a serviço de uma "lusofobia emancipatória", da qual José de Alencar é figura proeminente, com sua contribuição à confecção da ”grande carta Brasil/literário” e a introdução da “noção de Pátria aliada à da Língua numa mesma equação”.                              

Paladino do romance urbano brasileiro

O cerne do Romantismo -- prevalecente na literatura brasileira do final da Regência, logo após a Independência, até os anos subseqüentes à Guerra do Paraguai -- é, desde sempre, de essência política. A confluência entre as questões da Independência e da cultura estava sedimentada pela escassa consciência de uma identidade nacional, fruto de descompasso entre a consciência política e a consciência literária.

Foi a primeira articulação verdadeiramente nacional da literatura brasileira,, nosso primeiro sistema literários “orgânico”, como o define Antonio Candido, dotado de consciência ideológica e de uma consciência intrínseca, programática, de sua brasilidade.
E nele, destacou- se Alencar,  o mais empenhado na criação de uma língua literária brasileira — a mais bela conquista do Romantismo — e no fomento/sedimentação de uma nacionalidade estilística e tramática na literatura que então se fazia. Pois só numa língua nacionalizada a literatura conseguiria atualizar e fazer evoluir seu potencial criativo e de interpretação da realidade social e humana  numa perspectiva autentica e essencialmente brasileira.
Quando se deu a publicação de Cinco minutos, a primeira obra ficcional de Alencar, o público brasileiro, já completamente habituado à leitura de romances, concedeu à novela “grande acolhida, enorme simpatia”,registram as notícias da época. Ao entrar para o cenário da produção cultural brasileira, ombreado com os poucos escritores que se dedicaram a produzir narrativas brasileiras — Teixeira e Sousa (O filho do pescador), Joaquim Manuel de Macedo (A Moreninha),  Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias) — Alencar percebeu logo que daria grande contribuição  à cultura  nacional se conseguisse produzir histórias que refletissem o máximo de nossa realidade psíquica e social: o que obviamente não acontecia com os romances importados. Procurou escrever romances que captassem a sensibilidade artística brasileira e que fossem, ao mesmo tempo, moldando  nossa percepção do real, ensinando-nos a apreciar as conformações gerais de nossa natureza, história, sociedade, cultura –e  fermentou e fomentou um processo que iria abrir o caminho para as grandes obras de Machado de Assis, Raul Pompéia,  Aluísio Azevedo.
 Ao contribuir intensamente para um processo de afirmação nacional, o Romantismo em sua última fase, mercê de evolução rápida mas firme, trocou a mística indianista, de cunho ideológico conservador,pela militância liberal — da qual o romance urbano de Alencar pode ser considerado expressão, no que tange a crítica política, social e econômica, o registro de valores comportamentais dissociados do ‘moralmente’ aceito.
Nesse particular, para exemplificar e ilustrar um processo evolutivo, a par da figura inicial do “índio cavalheiresco” — o mito heróico fomentado por Alencar, derivado da ‘cultura’ literária indianista que vinha desde a fase colonial — engendrado foi também um mito sentimental: a mocinha brasileira, romântica, terna. Esse perfil de heroína, cheia de efusão amorosa, incorporava-se à paisagem social da Corte e celebrava o ‘amor-destino’, vencendo os obstáculos do destino e da sociedade  — situando esse motivo romântico na moldura sensata e realista do meio burguês, sem personagens  das camadas populares, retratando o casamento como garantia social, os happy endings enaltecendo o sentimentalismo e confirmando a ordem social.
Alencar,o mais lido romancista do País,  assegurou à novelística e ao romanesco  brasileiros seu primeiro grande vôo literário, e seus “perfis de mulher” — em Cinco minutos e A Viuvinha, em Lucíola, Diva e Senhora — deram nova vida ao  romance urbano brasileiro. Todo ele, mister frisar, ambientado na cidade do Rio de Janeiro.
 De forma incipiente nas duas  primeiras novelas, mais consistentemente nos romances seguintes, Alencar aprofunda a significação humana da história de amor. O conflito psicológico em Cinco minutos e em A Viuvinha se mantém ‘raso’, conforme (não poderia deixar de ser) o ideário convencional e conservador da sociedade  de então — ambos, estórias da moça que conhece um grande amor : a evolução dissociativa desse molde e o aprofundamento da densidade psicológica viriam nas três  obras subseqüentes.
Alencar, como nenhum outro, emblematiza o início, evolução, pujança e fim do Romantismo brasileiro. Ainda que ‘didaticamente/academicamente’ o encerramento do processo da literatura romântica, e advento do início do Realismo/Naturalismo, seja oficializado pela publicação do ‘romance de transição’ de Machado de Assis, Iaiá Garcia , em 1878 ( a transição contística machadiana está em Papéis avulsos, de 1881), muitos estudiosos na verdade situam –no em 1877, ano da morte de Alencar, em justa homenagem a um dos maiores nomes da literatura brasileira.

Ode ao amor em perfis femininos

Em meados do século XIX,  as mulheres da burguesia costumavam socializar as obras literárias por meio da leitura coletiva de jornais. Enquanto bordavam, em grandes salões,  se emocionavam com o simples e mágico ato de ler em voz alta e por meio dessas leituras, autores românticos penetraram na sociedade através desse público ouvinte para quem, gradativamente, se habituavam a escrever. Esses momentos exalavam prazer, soluços, risos,  sentimentos provocados pelos romances românticos e seus personagens marcantes. José de Alencar, ao  desvelar as várias faces de um Brasil recém independente, em busca de suas singularidades para delinear e sedimentar a identidade nacional, iniciar os brasileiros no conhecimento da realidade de seu país  adentrava na intimidade burguesa da cidade do Rio de Janeiro.
Em função da ânsia de ganhos que começa a prevalecer na mente das pessoas, para um certo segmento da sociedade surge o sentimento de frustração, de perda de valores, já que o homem começa a degradar-se para conseguir uma boa posição social. E nisso reside o cerne do teor crítico imprimido por Alencar , em maior ou menor grau, a seus romances urbanos, —como por exemplo as vicissitudes do personagem Jorge em A Viuvinha, que “(...) começou a viver essa vida dos nossos moços ricos, os quais pensam que gastar o dinheiro que seus pais ganharam é uma profissão suficiente para que se dispensem de abraçar qualquer outra, essas esterilidades a que se condenam homens que, pela sua posição independente, podiam aspirar a um futuro brilhante (...),  essa descuidosa existência da gente rica, apesar do novo progresso econômico da divisão do trabalho, que multiplicou infinitamente as indústrias, e por conseguinte as profissões, a questão ainda é bem difícil de resolver para aqueles que não querem trabalhar (...),  em uma época em que dominava a vertigem do suicídio”
 No contraponto a esse cenário de realidade social, se Alencar o denuncia e critica, não deixa de, como todos os românticos e seu ideário ficcional, pretender o predomínio da emoção sobre a razão, a liberação dos sentimentos dos sentimentos, a redenção e superação do materialismo pelo amor, a resistência  “a todas as seduções do mundo, sucumbir à força poderosa do amor puro e desinteressado”--  insiste na idéia de que o amor é um instrumento eficaz contra a despersonalização capitalista.
Soube ele, com enormes talento, competência e discernimento, desnudar o modo de vida na Corte, retratar  o cotidiano do Segundo Império , denunciar a burguesia negociando casamentos e amor, dramas morais e afetivos, tipos femininos imersos nos problemas de amor e do casamento, sob o manto do  patriarcalismo ou do matriarcado, colocando os costumes morais, sociais e políticos da sociedade burguesa de então como  o centro do romance urbano — mas sob enredo sempre idealista, concebido segundo a imaginação e o sentimentalismo romântico.
Alencar jamais perde a visão de conjunto de sua narrativa. Se a ação de seus personagens faz surgir acontecimentos que parecem bordejar o inverossímil, isso se dá por um momento fugaz, como brilhante recurso narrativo — afinal, alerta ele tanto em Cinco minutos como em A Viuvinha, “é uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história, e não um romance ; não escrevo um romance, conto-lhe uma história. A verdade dispensa a verossimilhança”. E tudo acaba por explicar-se convenientemente,  e o leitor termina ‘pacificado’.
 Este processo de compensação,  que permeia toda  sua obra, começou a ganhar foro de estilo (o ‘estilo Alencar'’) a partir justamente das primeiras   experiências de romance urbano (seus “ romancetes”). Em ambos utiliza o expediente, inédito à época, da figura da “prima D...”, condutora do desenrolar das intrigas das novelas, interlocutora privilegiada, nomeada como responsável pela fé depositada no escritor , com quem inclusive o autor ‘dialoga’, a la Machado de Assis (bem antes deste).
Nessas duas novelas precursoras, a história em contraposição ao romance, inovador ainda é o elemento metaliterário utilizado em Cinco minutos quando envia à ‘prima’ a cópia de um hipotético manuscrito realizada por ele e Carlota  "nos longos serões das nossas noites de inverno " — a  ficção dentro da ficção, inaugurando elemento somente muitos anos depois utilizado na literatura brasileira.
O narrador em ambas as novelas,como quase todo narrador romântico, procura criar a impressão de que o seu relato é verídico: teve existência real antes de assumir a forma literária. Esse narrador, enfim, confunde-se com um outro "eu" inventado por  Alencar em seus romances urbanos,  a tonalidade de voz assumida na transmissão de Cinco minutos e A Viuvinha, depois em Lucíola, é semelhante à de Senhora  —todos muito diferentes do acento narrativo de Iracema ou de O guarani.
Nas duas obras iniciais Alencar põe mais alta a essência da feminilidade, mas  traçando o perfil da “mulher cordial,romântica, idílica”—distinto da “mulher cerebral”, depois desenhado em Lucíola e mais adiante  com rigor e plenitude em  Senhora— perfil inerente tanto a Carlota  de Cinco minutos como a Carolina  de A Viuvinha.
Em Cinco minutos, o narrador em primeira pessoa — relatando  sua estória em carta à “prima D...” —é um típico ‘herói romântico, apaixonado, arrebatado por um amor irresistível’ : um exemplo clássico do Romantismo ao mostrar  ‘o amor puro, casto, duradouro e curativo, sentido por duas almas gêmeas perfeitas, com o destino interpondo-se no caminho e resolvendo-se no final’.Em A Viuvinha, narrada  em terceira pessoa —também à “prima D...” —  o personagem principal é moldado, a princípio  um pouco distante daquilo que se espera de um herói tipicamente romântico : Alencar desfila seus olhos pelas mazelas morais que são fruto do  capitalismo nascente e do culto ao perdularismo advindo da acumulação financeira, mas  como homem de seu tempo , não dá a Jorge as dimensões funestas dos personagens que seriam típicos mais tarde no Realismo, espicaçando-lhes os desvios de comportamento, ao contrário acaba por redimi-lo.
                                                                                                                                  








 































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