com fito e mote registrar a natureza do Rio de Janeiro como autêntica "cidade literária" -- ao mesmo tempo referenciar e reverenciar a cidade em seus 450 anos de existência.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Singularidades de essência literária carioca


 Memórias de um sargento de milícias  : origem do malandro brasileiro
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Já foi vaticinado – e a meu juízo, com bastante fundamento – que Memórias de um sargento de milícias , primeiramente veiculado  em folhetins no Correio Mercantil entre junho 1852  e   julho 1853,  publicado em livro em 1854 (1º. volume)  e  1865( 2º. volume), é ‘o mais carioca dos romances brasileiros’ :não diz-se de todos os tempos,mas dos Oitocentos e do Romantismo  digo que é ( abalizadas análises projetam a obra de  Manuel Antonio de Almeida  na verdade como um antecipador do Realismo)

Sem dúvidas, Memórias de um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida  podem ser vistos, a obra e o autor,  como um pólo gerador de eixos de ilações e recorrências com as algumas  obras e autores tanto de um  como do outro ciclo historiográfico da literatura brasileira. Antonio de Almeida e sua obra são efetivamente   emblemáticos  de uma inflexão temática, tramática e estilística no romantismo literário brasileiro, e em sua característica de  antecipação  do Realismo, simplesmente prenuncia Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis – obra inovadora,  marco da inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário brasileiro. ( Antonio de Almeida e Machado, como se sabe, mantiveram excelente relacionamento e marcantes  afinidades  profissionais, a par de  ilações literárias: Almeida foi chefe de Machado na oficina da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de tipografia,  introduziu-o  na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de Paula Brito, foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado, inclusive,dedicou a ele o importantíssimo artigo “O jornal e o livro”, publicado em janeiro 1859 no Correio Mercantil ).
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Memórias de um sargento de milícias :-‘anárquica’, ‘picaresca’, segundo Mario de Andrade, tem no protagonista Leonardo Filho antes de ser um ‘pícaro’, ‘thorminiano’ (de Lazarillo de Thormes),  o primeiro malandro da literatura brasileira, conforme Antonio Candido em seu primoroso ensaio “Dialética da malandragem”..
       
Memórias de um sargento de milícias. é antes de tudo, um romance social – daí os laços premonitórios com o Realismo; mas é também uma história do amor, no pleno estilo (e ‘dialética’)  do Romantismo, de Leonardo Filho por Luisinha,  retratando uma família – só que personalizando em Leonardo, um anti-patriota objeto da repressão de uma sociedade forte,preocupada com a ordem pública,  uma contraposição,  confrontante, com a ordem estabelecida, com o status institucionalizado, com a ordem  social, com o país: hilariante sátira sócio-política,  representa, expressa, emblematiza  metáforas sobre o destino do Brasil  como Nação;  Antônio de Almeida, guardadas as devidas proporções, mantém em  comum com os seqüentes autores realistas a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade, haja vista a essência do  universo dos personagens da obra– empregados, subempregados, desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados.
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O texto original do escrito de Manuel Antonio de Almeida veiculado  em folhetins no Correio Mercantil, na seção “Pacotilha”, especificamente de caráter humorístico e satírico, distinto do escopo geral do jornal , entre junho 1852  e   julho 1853, apresenta variações e notórias diferenças  com o texto, dado como ‘oficial’, publicado em livro em 1854 (1º. volume)  e  1865( 2º. volume), pela tipografia do Correio Mercantil : as edições em livro  sucederam-se ao longo  século XIX – e incorrem numa lamentável história de  graves incorreções de texto .
2ª.ed Tipografia do Comércio, de Joaquim F. Nunes, Pelotas, 1862, 2 vols  [ clandestina, ‘pirata’]
3ª. ed. Bibliotheca Brasileira,  de Quintino bocaiúva – vol. IX, 1862; vol X, 1863 (reunidos em volume único 1863)
4ª. ed. Tipografia e Litografia Carioca, de  Dias da Silva Jr., 1876, 2 vols.
5ª ed.  Coleção Brasileira , de Domingos Magalhães, 1876 [uma das  edições com erros].
6a. ed  H. Garnier  1900 [edição com erros].
7ª. ed. Cia Gráfico Editora Monteiro Lobato, 1925
-- outras edições:  Jornal do Brasil, 1927;  Cultura Brasileira, 1937; Livraria Martins, 1941 [todas baseadas em edições   não fidedignas e com muitos erros].

 

- o texto em livro:

Memórias de um sargento de milícias

TOMO I
CAPÍTULO I

Origem, nascimento e batizado

Era no tempo do rei.
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo — O canto dos meirinhos —; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.
Daí sua influência moral.
Mas tinham ainda outra influência, que é justamente a que falta aos de hoje: era a influência que derivava de suas condições físicas. Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros; nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem-se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição. Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos: nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu
armado. Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava de sua posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, o cidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras, que, desdobrando junto dele uma folha de papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio em tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível — Dou-me por citado. —
Ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! eram uma
sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se
começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação, e
durante a qual se tinha de pagar importe de passagem em um sem-número de pontos; o advogado, o procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão estendida, e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.
(......)

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