Memórias de um sargento de milícias : origem do malandro brasileiro
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Já foi vaticinado – e a meu
juízo, com bastante fundamento – que Memórias
de um sargento de milícias , primeiramente veiculado
em folhetins no Correio Mercantil entre junho 1852 e
julho 1853, publicado em livro em
1854 (1º. volume) e 1865( 2º. volume), é ‘o mais
carioca dos romances brasileiros’ :não diz-se de todos os tempos,mas dos
Oitocentos e do Romantismo digo que é (
abalizadas análises projetam a obra de
Manuel Antonio de Almeida na verdade
como um antecipador do Realismo)
Sem dúvidas, Memórias de um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida podem ser vistos, a obra e o autor, como um pólo gerador de eixos de ilações e
recorrências com as algumas obras e
autores tanto de um como do outro ciclo
historiográfico da literatura brasileira. Antonio de Almeida e sua obra são
efetivamente emblemáticos de uma inflexão temática, tramática e
estilística no romantismo literário brasileiro, e em sua característica de antecipação do Realismo, simplesmente prenuncia Memórias póstumas de Brás Cubas (1881),
de Machado de Assis – obra inovadora,
marco da inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo
literário brasileiro. ( Antonio de Almeida e Machado, como se sabe, mantiveram excelente
relacionamento e marcantes afinidades profissionais, a par de ilações literárias: Almeida foi chefe de
Machado na oficina da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de
tipografia, introduziu-o na Sociedade Petalógica e no seleto círculo
intelectual em torno de Paula Brito, foi seu grande incentivador para o fazer
literatura; Machado, inclusive,dedicou a ele o importantíssimo artigo “O jornal
e o livro”, publicado em janeiro 1859 no Correio
Mercantil ).
.
Memórias de um sargento de milícias :-‘anárquica’, ‘picaresca’,
segundo Mario de Andrade, tem no protagonista Leonardo Filho antes de ser um
‘pícaro’, ‘thorminiano’ (de Lazarillo de Thormes), o primeiro malandro da literatura brasileira,
conforme Antonio Candido em seu primoroso ensaio “Dialética da malandragem”..
Memórias de um
sargento de milícias. é
antes de tudo, um romance social – daí os laços premonitórios com o Realismo;
mas é também uma história do amor, no pleno estilo (e ‘dialética’) do Romantismo, de Leonardo Filho por Luisinha, retratando uma família – só que personalizando
em Leonardo, um anti-patriota objeto da repressão de uma sociedade
forte,preocupada com a ordem pública,
uma contraposição, confrontante,
com a ordem estabelecida, com o status institucionalizado, com a ordem social, com o país: hilariante sátira
sócio-política, representa, expressa,
emblematiza metáforas sobre o destino do
Brasil como Nação; Antônio de Almeida, guardadas as devidas
proporções, mantém em comum com os seqüentes
autores realistas a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos
princípios constitutivos da sociedade, haja vista a essência do universo dos personagens da obra– empregados,
subempregados, desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados.
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O texto original do escrito de Manuel Antonio
de Almeida veiculado em folhetins no Correio Mercantil, na seção “Pacotilha”, especificamente de
caráter humorístico e satírico, distinto do escopo geral do jornal , entre junho 1852 e
julho 1853, apresenta variações e notórias diferenças com o texto, dado como ‘oficial’, publicado
em livro em 1854 (1º. volume) e 1865( 2º. volume), pela tipografia do Correio Mercantil : as edições em
livro sucederam-se ao longo século XIX – e incorrem numa lamentável
história de graves incorreções de texto
.
2ª.ed Tipografia do
Comércio, de Joaquim F. Nunes, Pelotas, 1862, 2 vols [ clandestina, ‘pirata’]
3ª. ed. Bibliotheca
Brasileira, de Quintino bocaiúva – vol.
IX, 1862; vol X, 1863 (reunidos em volume único 1863)
4ª. ed. Tipografia e
Litografia Carioca, de Dias da Silva Jr.,
1876, 2 vols.
5ª ed. Coleção Brasileira , de Domingos Magalhães,
1876 [uma das edições com erros].
6a. ed H. Garnier
1900 [edição com erros].
7ª. ed. Cia Gráfico Editora Monteiro Lobato,
1925
-- outras edições: Jornal do Brasil, 1927; Cultura Brasileira, 1937; Livraria Martins,
1941 [todas baseadas em edições não fidedignas e com muitos erros].
Memórias de um sargento de
milícias
TOMO I
CAPÍTULO I
Origem, nascimento e batizado
Era no tempo do rei.
Uma das quatro esquinas que
formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se
nesse tempo — O canto dos meirinhos —; e bem lhe assentava o nome, porque era
aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava
então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a
sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e
temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia
judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era
entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora,
os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se
passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e
finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.
Daí sua influência moral.
Mas tinham ainda outra
influência, que é justamente a que falta aos de hoje: era a influência que
derivava de suas condições físicas. Os meirinhos de hoje são homens como
quaisquer outros; nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem no seu
trajar, confundem-se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou
contínuo de repartição. Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam
com ninguém; eram originais, eram tipos: nos seus semblantes transluzia um
certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam
chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato
afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita
penduravam um círculo branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto
por um grave chapéu
armado. Colocado sob a
importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava de sua
posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua
casa, o cidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras, que, desdobrando
junto dele uma folha de papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais
que se fizesse não havia remédio em tais circunstâncias senão deixar escapar
dos lábios o terrível — Dou-me por citado. —
Ninguém sabe que significação
fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! eram uma
sentença de peregrinação eterna
que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se
começava uma longa e afadigosa
viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação, e
durante a qual se tinha de pagar
importe de passagem em um sem-número de pontos; o advogado, o procurador, o
inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão
estendida, e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém
todo o conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.
(......)
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