Introdução
Dizem, e eu creio, que a nossa
comissão científica, ao tempo em que suspenderam a subvenção, já se achava
quase a ponto de desorganizar-se por si mesma, e sustentam que os seus
trabalhos não corresponderam às despesas feitas; parece-me, porém, que em tal
caso o mais acertado seria procurar remover os embaraços que a amesquinhavam,
dar-lhe mais seguras condições de harmonia e de vigor, e fazê-la continuar em
zeloso
labor, mesmo porque as mais
avultadas despesas estavam feitas, e a verdadeira economia aconselhava
aproveitar o dinheiro empregado e a experiência do noviciado dos exploradores.
Mas entendeu-se que isso de
comissão científica era peta, e acabou-se a história.
Devemos contentar-nos com as
comissões dessa natureza que têm sido e hão de ser mandadas ao Brasil por
nações estrangeiras; nós não temos a menor necessidade de conhecer a nossa
própria casa: basta que os estranhos nos ensinem o que ela é e o que temos
dentro dela.
Afirmam que a tal comissão
importou e devia importar um enorme desperdício dos dinheiros públicos; porque
o único resultado que prometia era alguma coleção de bichinhos para o museu
nacional, que provavelmente também se entende que nos faz carregar com uma
despesa de luxo. Vê-se daí que os nossos homens práticos aborrecem a história natural,
que é, segundo eles, um gênero especial de poesia. Mas a comissão científica
tinha ainda a incumbência de muitos outros e importantíssimos trabalhos, e,
portanto, não procedia àquela observação, que, aliás, eu consideraria muito
justa; porquanto, era puerilidade indesculpável tomar-se tanto incômodo para se
arranjar lá por aqueles desertos uma coleção de bichinhos, quando aqui mesmo da
capital do império se poderiam organizar, até entre os próprios homens práticos
e os nossos grandes políticos, umas poucas de coleções de bichos de proporções
colossais que ainda
não foram classificados pelos
naturalistas.
Mas, repito, não é das províncias
centrais e longínquas que pretendo falar. Dessas temos notícia de que
fosforizam as suas eleições periodicamente, e é o que basta. Quanto ao mais,
representam um mundo que ainda está à espera do seu Colombo; e não admira que
assim exista ignorado, quanto é certo que nem conhecemos bem a cidade de S. Sebastião
do Rio de Janeiro.
Note-se que esta incúria seria
escusável ao montanhês de Minas, ao guasca do Sul, ao caipira do Paraná; o que,
porém, muito mais surpreende é que os próprios cariocas não estejam ao fato da
história e das crônicas da capital, de que tanto se ufanam.
Disse um escritor francês, cujo
nome agora me não lembro, que entre os franceses são os parisienses os que
conhecem menos Paris. No Brasil não se pode dizer coisa semelhante, porque os
provincianos, como os cariocas, desconhecem do mesmo modo a nossa boa
Sebastianópolis.
Se no outro tempo era grande essa
antipatriótica falta de curiosidade, agora é muito pior: os paquetes a vapor e
a facilidade das viagens ao Velho Mundo tiram-nos à vontade de passear os
nossos, e é mais comum encontrar um fluminense que nos descreva as montanhas da
Suíça e os jardins e palácios de Paris e Londres do que um outro que tenha
perfeito conhecimento da história de algum dos nossos pobres edifícios, da
crônica dos nossos conventos e de algumas das nossas romanescas igrejas
solitárias, e até mesmo que nos fale com verdadeiro interesse dos sítios
encantadores e
das eminências majestosas que
enchem de sublime poesia a capital do Brasil.
Hoje em dia uma viagem a Lisboa é
coisa mais simples do que um passeio ao Corcovado.
Entretanto, eu estou convencido
de que se podia bem viajar meses inteiros pela cidade do Rio de Janeiro,
achando-se todos os dias alimento agradável para o espírito e o coração.
O passado é um livro imenso cheio
de preciosos tesouros que não se devem desprezar; e toda a terra tem sua
história mais ou menos poética, suas recordações mais ou menos interessantes,
como todo o coração tem suas saudades. A capital do Império do Brasil não pode
ser uma exceção a esta regra.
Vamos dar princípio hoje a um
passeio pela cidade do Rio de Janeiro? É um convite que faço aos leitores do Jornal do Commercio. Se o passeio
parecer fastidioso ou monótono, não haverá o menor inconveniente em dá-lo por
acabado no fim da primeira hora; se agradar, continuaremos com ele até...
até... quem sabe até quando? Provavelmente conversaremos de preferência a
respeito dos tempos que já foram e, portanto, não é preciso que nos lembremos
já do futuro, marcando o fim da nossa viagem amena.
Vamos passear.
Não se incomodem com os
preparativos de uma viagem, que talvez seja longa: eu tomo isso à minha conta.
Não tenham medo de se verem metidos por mim dentro dos ônibus, gôndolas ou
carros da praça; desejo muito dar o maior prazer que for possível aos meus
companheiros de passeio, para condená-los a semelhante martírio.
Se algum dos meus leitores é, por
infelicidade, paralítico, se algum outro quebrou as pernas na luta, no litoral
de dezembro último em qualquer dos pontos do império onde a Vestal foi
festejada com o emprego da força material, se ainda outro está tão atarefado
com os cinco ou seis cargos em que se consagra ao serviço da pátria que não tem
tempo de dar um passo na rua, ainda esses mesmos não serão privados de passear comigo.
Não há incompatibilidade que afetem o nosso passeio. Não preciso pedir o braço,
apenas peço a atenção dos meus leitores. Eu passearei escrevendo, eles lendo, e
ainda assim – oh! fatal idéia! – pode bem ser que eles se fatiguem primeiro do
que eu.
Acendamos pois um Havana (da
Bahia), ou um Manilha (do Rio de Janeiro), e... passeemos.
Excluamos do nosso passeio toda a
idéia de ordem ou sistema: regular os nossos passos, impor-nos uma direção e um
caminho fora um erro lamentável que daria lugar a mil questões de precedência
em que, sem dúvida, os frades barbadinhos seriam os primeiros a fazer ouvir bem
fundados protestos em nome da igreja de S. Sebastião.
Independência completa da
cronologia! Um passeio cronológico obrigar-nos-ia a começar dando um salto do
Pão de Açúcar ao morro do Castelo, e um salto desses somente com ligeireza e
com as pernas dos volantins políticos se poderia dar.
Passeemos à vontade: a polícia o
permite e as posturas da ilustríssima Câmara o não proíbem.
Estamos no n
osso direito:
passeemos.
Eis-nos em frente do palácio
imperial, no largo do Paço.
Por onde viemos para chegar aqui,
e como nos achamos de improviso neste lugar, é o que não importa saber, nem eu
poderia dizê-lo.
Consolemo-nos desta primeira
irregularidade do nosso passeio; além de nós, há por esse mundo muita gente que
se acha em excelentes posições sem saber como. O nosso século é fértil em
milagres desta ordem.
Tem-se visto no correr dele até
quadrúpedes que voam.
Paremos agora um pouco, e
conversemos por dez minutos.
É justo que estudemos com
interesse a história do palácio imperial; antes, porém, cumpre dizer duas
palavras a respeito do lugar em que ele está situado.
Esta praça tem mudado tanto de
proporções como de nome, e ainda mais vezes de nome do que de proporções.
A sua extensão primitiva não a
posso determinar; no último quartel, porém, do século passado, o vice-rei Luís
de Vasconcelos e Sousa deu-lhe regularidade e limites positivos, fazendo
construir um belo cais de cantaria granítica à imitação de outro feito em
Lisboa pela Marinha Real, e ficou então a praça formando um quadrilongo de
setenta e cinco braças de comprimento sobre quarenta e cinco de largura. Esse
cais tinha defronte do palácio uma rampa destinada a facilitar os desembarques,
e de espaço a espaço, assentos de pedra. Tudo isso desapareceu desde 1841 ou
1842, por ordem da Câmara Municipal, que projetou construir outro cais mais ao
mar. Lá se foram, porém, dezenove anos, e ainda estamos à espera dele!
Entretanto, as obras de aterro
têm já estendido bastante a praça, de modo que agora se acha não pouco afastado
da praia o chafariz, que, levantado primeiro no meio daquela, fizera o vice-rei
Luís de Vasconcelos substituir por outro à face do mar.
Não nos queixemos da nossa
edilidade: ela já fez o que pôde, e que infelizmente se reduziu, pouco mais ou
menos, a coisa nenhuma.
Lembra-me, porém, que para começo
de trabalhos do novo cais se construiu uma trincheira de tábuas, seguras por
pregos que tinham as pontas para o mar e as cabeças para terra, e o mar,
aproveitando-se daquela bem ordenada pregadura, em um dia em que fez mareta,
atirou com as tábuas à praia, de maneira que ensinou à câmara municipal que até
os mesmos pregos devem saber onde põem os pés e onde têm as cabeças.
Não tenho ainda certeza de que
esta lição aproveitasse.
O governo tomou a seu cargo a
obra do novo cais, e há esperanças de que mais diligente se há de mostrar; no
entanto, as dimensões da praça excedem já muito às que tinha no fim do século
passado e por não poucos anos conservou.
Falei das proporções. Agora
tratarei dos nomes.
A praia em que se termina esta
praça teve primitivamente o nome de – praia da Senhora do Ó – e hei de em breve
dizê-lo porquê; mas o nome mais antigo dos que tem tido esta praça é lugar do
Ferreiro da Polé; a origem de semelhante denominação perde-se na noite dos tempos.
Quer me parecer que não podia ser simpática.
No fim do século décimo-sexto, ou
no princípio do seguinte, chamou-se praça do Carmo, porque era dominada pelo
convento levantado pelos carmelitas.
De 1743 em diante, recebeu o nome
de terreiro do Paço, em razão de se haver construído nela a casa dos governadores,
e os carmelitas não brigaram com o conde de Bobadela por essa mudança de
denominação, porque, enfim, palavras não adubam sopas, e frades não fazem questões
de pouco mais ou menos.
Por último, largo do Paço ficou
sendo chamada. Não aposto, porém, que conserve por muito tempo o mesmo nome, a
menos que o Estado se resolva a levantar outro palácio no mesmo lugar, pois o
que existe, desde alguns anos recebeu do cupim formal intimação para procurar um
substituto.
E antes dessas instantes
intimações do cupim, já ao dever e ao patriotismo cumpria ter lembrada a
necessidade urgente de uma tal substituição.
Este palácio que estamos vendo
nem tem no seu aspecto exterior bastante majestade, nem em suas disposições e
ornatos interiores suficiente magnificência para mostrar-se digno do chefe do
Estado e digno da nação. Há na cidade casas de particulares que
incontestavelmente ostentam mais riqueza e oferecem mais cômodo do que ele.
Nas monarquias, o esplendor da
majestade reflete sobre toda a nação, e a casa do monarca, o palácio do chefe
do Estado, que atrai todas as vistas, que abre suas salas aos representantes
das nações estrangeiras e a todos os cidadãos, deve ser grandioso como a idéia
que representa.
Não me digam que o Brasil não tem
dinheiro para levantar um palácio. Oh! se tem. O patronato acha sempre recursos
financeiros para fazer presentes à custa da pátria amada, e só o dever e o
patriotismo terão sempre de esbarrar diante do monstro chamado déficit.
O corpo legislativo não pode continuar
a descuidar-se desta evidente necessidade. Além de tudo, o palácio está
arruinado e a nação deve oferecer ao seu primeiro cidadão um edifício que, pelo
menos, se adivinhe logo o que é, quando se olhar para ele.
Comecei falando mal do palácio,
antes de descrevê-lo e de contar a sua história.
Vou emendar o meu erro.
Para um palácio, este envelheceu
depressa, pois que apenas conta cento e dezoito anos de idade, tendo sido,
portanto, construído quase dois séculos depois da fundação da cidade do Rio de
Janeiro.
(...)
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