com fito e mote registrar a natureza do Rio de Janeiro como autêntica "cidade literária" -- ao mesmo tempo referenciar e reverenciar a cidade em seus 450 anos de existência.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro

                                                                         Introdução

Dizem, e eu creio, que a nossa comissão científica, ao tempo em que suspenderam a subvenção, já se achava quase a ponto de desorganizar-se por si mesma, e sustentam que os seus trabalhos não corresponderam às despesas feitas; parece-me, porém, que em tal caso o mais acertado seria procurar remover os embaraços que a amesquinhavam, dar-lhe mais seguras condições de harmonia e de vigor, e fazê-la continuar em zeloso
labor, mesmo porque as mais avultadas despesas estavam feitas, e a verdadeira economia aconselhava aproveitar o dinheiro empregado e a experiência do noviciado dos exploradores.
Mas entendeu-se que isso de comissão científica era peta, e acabou-se a história.
Devemos contentar-nos com as comissões dessa natureza que têm sido e hão de ser mandadas ao Brasil por nações estrangeiras; nós não temos a menor necessidade de conhecer a nossa própria casa: basta que os estranhos nos ensinem o que ela é e o que temos dentro dela.
Afirmam que a tal comissão importou e devia importar um enorme desperdício dos dinheiros públicos; porque o único resultado que prometia era alguma coleção de bichinhos para o museu nacional, que provavelmente também se entende que nos faz carregar com uma despesa de luxo. Vê-se daí que os nossos homens práticos aborrecem a história natural, que é, segundo eles, um gênero especial de poesia. Mas a comissão científica tinha ainda a incumbência de muitos outros e importantíssimos trabalhos, e, portanto, não procedia àquela observação, que, aliás, eu consideraria muito justa; porquanto, era puerilidade indesculpável tomar-se tanto incômodo para se arranjar lá por aqueles desertos uma coleção de bichinhos, quando aqui mesmo da capital do império se poderiam organizar, até entre os próprios homens práticos e os nossos grandes políticos, umas poucas de coleções de bichos de proporções colossais que ainda
não foram classificados pelos naturalistas.
Mas, repito, não é das províncias centrais e longínquas que pretendo falar. Dessas temos notícia de que fosforizam as suas eleições periodicamente, e é o que basta. Quanto ao mais, representam um mundo que ainda está à espera do seu Colombo; e não admira que assim exista ignorado, quanto é certo que nem conhecemos bem a cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro.
Note-se que esta incúria seria escusável ao montanhês de Minas, ao guasca do Sul, ao caipira do Paraná; o que, porém, muito mais surpreende é que os próprios cariocas não estejam ao fato da história e das crônicas da capital, de que tanto se ufanam.
Disse um escritor francês, cujo nome agora me não lembro, que entre os franceses são os parisienses os que conhecem menos Paris. No Brasil não se pode dizer coisa semelhante, porque os provincianos, como os cariocas, desconhecem do mesmo modo a nossa boa Sebastianópolis.
Se no outro tempo era grande essa antipatriótica falta de curiosidade, agora é muito pior: os paquetes a vapor e a facilidade das viagens ao Velho Mundo tiram-nos à vontade de passear os nossos, e é mais comum encontrar um fluminense que nos descreva as montanhas da Suíça e os jardins e palácios de Paris e Londres do que um outro que tenha perfeito conhecimento da história de algum dos nossos pobres edifícios, da crônica dos nossos conventos e de algumas das nossas romanescas igrejas solitárias, e até mesmo que nos fale com verdadeiro interesse dos sítios encantadores e
das eminências majestosas que enchem de sublime poesia a capital do Brasil.
Hoje em dia uma viagem a Lisboa é coisa mais simples do que um passeio ao Corcovado.
Entretanto, eu estou convencido de que se podia bem viajar meses inteiros pela cidade do Rio de Janeiro, achando-se todos os dias alimento agradável para o espírito e o coração.
O passado é um livro imenso cheio de preciosos tesouros que não se devem desprezar; e toda a terra tem sua história mais ou menos poética, suas recordações mais ou menos interessantes, como todo o coração tem suas saudades. A capital do Império do Brasil não pode ser uma exceção a esta regra.
Vamos dar princípio hoje a um passeio pela cidade do Rio de Janeiro? É um convite que faço aos leitores do Jornal do Commercio. Se o passeio parecer fastidioso ou monótono, não haverá o menor inconveniente em dá-lo por acabado no fim da primeira hora; se agradar, continuaremos com ele até... até... quem sabe até quando? Provavelmente conversaremos de preferência a respeito dos tempos que já foram e, portanto, não é preciso que nos lembremos já do futuro, marcando o fim da nossa viagem amena.
Vamos passear.
Não se incomodem com os preparativos de uma viagem, que talvez seja longa: eu tomo isso à minha conta. Não tenham medo de se verem metidos por mim dentro dos ônibus, gôndolas ou carros da praça; desejo muito dar o maior prazer que for possível aos meus companheiros de passeio, para condená-los a semelhante martírio.
Se algum dos meus leitores é, por infelicidade, paralítico, se algum outro quebrou as pernas na luta, no litoral de dezembro último em qualquer dos pontos do império onde a Vestal foi festejada com o emprego da força material, se ainda outro está tão atarefado com os cinco ou seis cargos em que se consagra ao serviço da pátria que não tem tempo de dar um passo na rua, ainda esses mesmos não serão privados de passear comigo. Não há incompatibilidade que afetem o nosso passeio. Não preciso pedir o braço, apenas peço a atenção dos meus leitores. Eu passearei escrevendo, eles lendo, e ainda assim – oh! fatal idéia! – pode bem ser que eles se fatiguem primeiro do que eu.
Acendamos pois um Havana (da Bahia), ou um Manilha (do Rio de Janeiro), e... passeemos.
Excluamos do nosso passeio toda a idéia de ordem ou sistema: regular os nossos passos, impor-nos uma direção e um caminho fora um erro lamentável que daria lugar a mil questões de precedência em que, sem dúvida, os frades barbadinhos seriam os primeiros a fazer ouvir bem fundados protestos em nome da igreja de S. Sebastião.
Independência completa da cronologia! Um passeio cronológico obrigar-nos-ia a começar dando um salto do Pão de Açúcar ao morro do Castelo, e um salto desses somente com ligeireza e com as pernas dos volantins políticos se poderia dar.
Passeemos à vontade: a polícia o permite e as posturas da ilustríssima Câmara o não proíbem.
Estamos no n
osso direito: passeemos.

                                                         O Palácio Imperial

Eis-nos em frente do palácio imperial, no largo do Paço.
Por onde viemos para chegar aqui, e como nos achamos de improviso neste lugar, é o que não importa saber, nem eu poderia dizê-lo.
Consolemo-nos desta primeira irregularidade do nosso passeio; além de nós, há por esse mundo muita gente que se acha em excelentes posições sem saber como. O nosso século é fértil em milagres desta ordem.
Tem-se visto no correr dele até quadrúpedes que voam.
Paremos agora um pouco, e conversemos por dez minutos.
É justo que estudemos com interesse a história do palácio imperial; antes, porém, cumpre dizer duas palavras a respeito do lugar em que ele está situado.
Esta praça tem mudado tanto de proporções como de nome, e ainda mais vezes de nome do que de proporções.
A sua extensão primitiva não a posso determinar; no último quartel, porém, do século passado, o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa deu-lhe regularidade e limites positivos, fazendo construir um belo cais de cantaria granítica à imitação de outro feito em Lisboa pela Marinha Real, e ficou então a praça formando um quadrilongo de setenta e cinco braças de comprimento sobre quarenta e cinco de largura. Esse cais tinha defronte do palácio uma rampa destinada a facilitar os desembarques, e de espaço a espaço, assentos de pedra. Tudo isso desapareceu desde 1841 ou 1842, por ordem da Câmara Municipal, que projetou construir outro cais mais ao mar. Lá se foram, porém, dezenove anos, e ainda estamos à espera dele!
Entretanto, as obras de aterro têm já estendido bastante a praça, de modo que agora se acha não pouco afastado da praia o chafariz, que, levantado primeiro no meio daquela, fizera o vice-rei Luís de Vasconcelos substituir por outro à face do mar.
Não nos queixemos da nossa edilidade: ela já fez o que pôde, e que infelizmente se reduziu, pouco mais ou menos, a coisa nenhuma.
Lembra-me, porém, que para começo de trabalhos do novo cais se construiu uma trincheira de tábuas, seguras por pregos que tinham as pontas para o mar e as cabeças para terra, e o mar, aproveitando-se daquela bem ordenada pregadura, em um dia em que fez mareta, atirou com as tábuas à praia, de maneira que ensinou à câmara municipal que até os mesmos pregos devem saber onde põem os pés e onde têm as cabeças.
Não tenho ainda certeza de que esta lição aproveitasse.
O governo tomou a seu cargo a obra do novo cais, e há esperanças de que mais diligente se há de mostrar; no entanto, as dimensões da praça excedem já muito às que tinha no fim do século passado e por não poucos anos conservou.
Falei das proporções. Agora tratarei dos nomes.
A praia em que se termina esta praça teve primitivamente o nome de – praia da Senhora do Ó – e hei de em breve dizê-lo porquê; mas o nome mais antigo dos que tem tido esta praça é lugar do Ferreiro da Polé; a origem de semelhante denominação perde-se na noite dos tempos. Quer me parecer que não podia ser simpática.
No fim do século décimo-sexto, ou no princípio do seguinte, chamou-se praça do Carmo, porque era dominada pelo convento levantado pelos carmelitas.
De 1743 em diante, recebeu o nome de terreiro do Paço, em razão de se haver construído nela a casa dos governadores, e os carmelitas não brigaram com o conde de Bobadela por essa mudança de denominação, porque, enfim, palavras não adubam sopas, e frades não fazem questões de pouco mais ou menos.
Por último, largo do Paço ficou sendo chamada. Não aposto, porém, que conserve por muito tempo o mesmo nome, a menos que o Estado se resolva a levantar outro palácio no mesmo lugar, pois o que existe, desde alguns anos recebeu do cupim formal intimação para procurar um substituto.
E antes dessas instantes intimações do cupim, já ao dever e ao patriotismo cumpria ter lembrada a necessidade urgente de uma tal substituição.
Este palácio que estamos vendo nem tem no seu aspecto exterior bastante majestade, nem em suas disposições e ornatos interiores suficiente magnificência para mostrar-se digno do chefe do Estado e digno da nação. Há na cidade casas de particulares que incontestavelmente ostentam mais riqueza e oferecem mais cômodo do que ele.
Nas monarquias, o esplendor da majestade reflete sobre toda a nação, e a casa do monarca, o palácio do chefe do Estado, que atrai todas as vistas, que abre suas salas aos representantes das nações estrangeiras e a todos os cidadãos, deve ser grandioso como a idéia que representa.
Não me digam que o Brasil não tem dinheiro para levantar um palácio. Oh! se tem. O patronato acha sempre recursos financeiros para fazer presentes à custa da pátria amada, e só o dever e o patriotismo terão sempre de esbarrar diante do monstro chamado déficit.
O corpo legislativo não pode continuar a descuidar-se desta evidente necessidade. Além de tudo, o palácio está arruinado e a nação deve oferecer ao seu primeiro cidadão um edifício que, pelo menos, se adivinhe logo o que é, quando se olhar para ele.
Comecei falando mal do palácio, antes de descrevê-lo e de contar a sua história.
Vou emendar o meu erro.
Para um palácio, este envelheceu depressa, pois que apenas conta cento e dezoito anos de idade, tendo sido, portanto, construído quase dois séculos depois da fundação da cidade do Rio de Janeiro.

(...)

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