A
mulher brasileira é escravocrata ?
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Muito !
Ninguém
o é tanto, nem tão cegamente.
E,
como poderia deixar de ser assim, se a mulher brasileira caminha com sessenta
anos de atraso ? Se, enquanto navegamos em 1884, armados de escapelos, munidos
de ciência, medindo os nossos gostos, as nossas simpatias pela bitola de uma
educação positiva e moderna; ela a
mulher, a que devia ir adiante com as criancinhas pela mão, a explicar o que
é ar, o azul do céu, a classificar as
flores e as folhas que os filhos fossem arrancando no caminho para brincar,
ela, que devia saber tudo, como educadora, como mestra; ela, coitada,
arrasta-se ainda nas brumas do romantismo , crê
no diabo, tem mau agouro com o arrulhar dos pombos, empalidece defronte
de um pouco de azeite entornado, e em vez de responder pelos seus atos, lança
tudo à conta da “ Fatalidade”.
Antes
de cometer qualquer coisa, não procura estudar e dirigir as circunstâncias que
tenham porventura de produzir a grande calamidade de sua vida; não ! dizem
simplesmente : -- Será o que Deus quiser !
E
deixam correr o marfim.
Depois
do caso verificado; quando todas conseqüências começam de lhe cair sobre a bela
cabecinha pecadora, então elas voltam os formosos olhos para o céu, suspiram e
dizem :
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Ora ! É porque mesmo já tinha de suceder ! Fez-se a vontade de Deus !
Todavia,
esta irresponsabilidade é de 1820 e não de nossos dias. A mulher de nossos dias
é a única responsável pelos seus atos, é a única que dirige a sua existência, a
que defende a sua virtude e a que determina do destino bom ou mau da geração
que a secunda.
Os
homens serão obra sua, a sociedade será o reflexo do que elas pensaram, do que
elas sentiram, do muito que amaram e que sofreram.
Pois
bem, a mulher enquanto não chega a compreender essa verdade há de fatalmente
escravocrata !
Há
de ser escravocrata, porque é supersticiosa, romântica, irresponsável de seus
atos e ignorante dos seus deveres mais comezinhos.
Conheci
na província muita senhora honesta quanto às suas atribuições de esposa, muito
boas e generosas, quanto ao seu modo de praticar com os parentes e amigos, mas
verdadeiramente perversas quanto aos escravos.
É
que faziam uma idéia falsa do que fossem essas criaturas negras, que um acaso
terrível lhes atirara aos pés, como feras domesticadas. Metiam-lhes o chicote
naturalmente, como se metendo o chicote cumprissem um destino decretado pelos
céus.
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Quando Deus os fez negros não foi por boa coisa !...
É
uma praga que a senhora do norte repete a todo o instante.
Uma
senhora conheci, muito velha, muito devota, que saía todas as manhãs para a
igreja, deixando um escravo no castigo com ordem para não o parar enquanto ela
não voltasse. Outra me consta que mandou arrancar os dentes de uma escrava
porque o marido uma ocasião tivera a imprudência de dizer que a infeliz tinha
uns dentes admiráveis. Outra, apesar de muito boa e honesta mulher, sei que à
noite, saudosa do marido e caindo de tédio, chamava para junto de sua rede uma
escrava e exigia que esta contasse histórias engraçadas : quando a história não
tinha a graça desejada, metia-lhe o vergalho.Imagine-se os apuros da pobre
escrava !
Mas
em minha própria família, como em toda família maranhense, constituída nos
últimos oitenta anos, as cenas de rigor com os negros são tão comuns que chegam
a entrar nos hábitos da existência.
Lembro-me
ainda ter visto, em pequeno, e quantas vezes ! dois ou três escravos na surra.
Era vergonhoso : castigavam-se mutuamente, iam passando os bolos e as
chicotadas como se estivessem a fazer um jogo, uma patuscada para se divertirem.
Felizmente
tudo isso hoje está modificado ! Ainda me recordo, porém, de uma preta velha,
talvez de sessenta anos nessa época, avó, boa de coração e pura de costumes
como poucas mulheres tenho visto em todas as classes sociais. Era uma criatura
inocente, da roça, quase que não sabia falar e andava sempre triste, consumida
pelas saudades de seus filhos e de seus netos. Apesar da idade, dispunha da
força de um homem e tinha o corpo em pleno vigor.
A
senhora dessa avó, como não lhe podia arrancar o serviço de roça, visto estar
na cidade, dava-lhe um tabuleiro cheio de frutas e ordenava à boa mulher que as
fosse vender pelas ruas. A preta saía de manhã e voltava à noite, depois de
percorrer toda a pequena cidade de S. Luis do Maranhão.
Mas,
infeliz dela se não tivesse conseguido
vender todas as frutas, porque a senhora, uma senhora de muito boa sociedade e
tida na província como um dos melhores corações, a senhora chamava um escravo
dos mais possantes e ordenava-lhe que aplicasse meio grosa de palmatoadas à
pobre velha.
Foi
tão grande a impressão que recebi nesse momento que ainda tenho defronte dos
olhos o vulto venerando da escrava estendendo ora uma ora a outra mão para
receber a pancada. Vejo ainda a sua cabeça vergada, um pouco oprimida pelo hábito
de carregar o tabuleiro, o cabelo encarapinhado e branco. Vejo correrem-lhe dos
olhos as lágrimas silenciosas dos mártires e ouço-lhe os gemidos lentos,
arrastados, como deviam ser os de Cristo ao galgar o rastro do Calvário.
Já
não existes, pobre criatura de cabelos brancos, pobre mãe de mães, vieste e
saíste deste mundo amarrada sempre ao cativeiro !
Entretanto,
aquelas mãos talhadas para as bênçãos nunca se ergueram para amaldiçoar os seus
verdugos !
Pobre
santa !