com fito e mote registrar a natureza do Rio de Janeiro como autêntica "cidade literária" -- ao mesmo tempo referenciar e reverenciar a cidade em seus 450 anos de existência.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

de Arthur Azevedo, 2 contos primorosos

Os charutos

No último sábado tive a satisfação de encontrar a minha espirituosa amiga dona Henriqueta na rua dos Ourives, quando ia entrar em casa do Chappot Prevost, que tem a honra de ser o seu dentista.
- Ainda bem que  o encontro. Suba. Preciso falar-lhe.
Subimos.
O Chapot Prevost estava, como sempre, ocupado, e a minha espirituosa amiga teve que esperar na elegante saleta do mais amável dos nossos cirurgiões dentistas.
--Tenho aqui na ponta da língua uma história para os seus leitores.
- Sim?
- Ah! mas é preciso escrevê-la com muito cuidado. Foi uma amiga minha que me contou. Não creio que seja inédita, mas é engraçada.
- Ouçamos.
E dona Henriqueta contou-me a história que vou reproduzir. Enquanto contava, ria-se a perder, mostrando uns dentes belíssimos, que não justificavam absolutamente a sua presença na casa do Chapot Prevost. Não sei porquê, em geral, as senhoras que vão aos dentistas têm muito bonitos dentes.
Vamos ao conto. Se algum dos leitores já o conhecer, tanto pior para mim.                                                                                        
*
Foi um dia de verdadeiro júbilo em casa do barão e da baronesa de Cajapió, nas Laranjeiras, aquele belo domingo em que o doutor Salles Borba lhes pediu a Isabelinha em casamento.
As três filhas mais velhas estavam casadas, e muito bem casadas. A Isabelinha era a última, e o doutor Salles Borba,·engenheiro distinto, muito novo ainda, bem educado, viajado, bonito, elegante e quase rico, era um partido como não se encontram muitos.
A Isabelinha aceitara o noivo com entusiasmo; não que o amasse, porque, educada nos mais severos princípios, não tinha ainda prestado atenção a nenhum homem; reconhecia, entretanto, naquele belo moço -- tão correto nas maneiras como nas vestimentas -- alguma coisa que o tornava superior à maior parte dos indivíduos que ela encontrava nas salas aonde os pais a conduziam com a mal disfarçada. intenção de lhe procurar marido .
*
O casamento realizou-se com toda a pompa.
A pedido da baronesa, o doutor Salles Borba e sua esposa ficaram morando no palacete das Laranjeiras, que tinha acomodações para abrigar à vontade duas numerosas famílias.
*
Quando o último convidado se retirou, e os noivos entraram na misteriosa alcova, que docemente lhes sorria entre sedas azuis e rendas brancas, o doutor Salles Borba tirou da algibeira um magnífico havano, acendeu-o na vela cor de rosa que ardia num esplêndido castiçal de ouro, e pôs-se a fumar.
A Isabelinha empalideceu de despeito. Pois que ! ele, o seu noivo, fumava dentro da alcova nupcial, na própria noite do casamento ! ...
Aquele charuto inoportuno pareceu-lhe -- e com razão, digamos -- uma brutalidade inverossímel, uma grosseria imperdoável.
Na realidade não se compreende que um cavalheiro da estofa do doutor Salles Borba tão viciado estivesse, Deus meu ! que não sacrificasse o seu charuto à a mais elementar  cortesia.
Acresce que, instruído como era, naturalmente havia lido a Fisiologia do casamento, e devia saber que o autor meteu os fumantes no rol dos “predestinados”. É verdade que isso apenas prova que Balzac... não fumava .
*
Mas não percamos de vista os nossos noivos.
Os leitores, e principalmente as leitoras, vão ficar  indignados ao saber que o doutor Salles Borba levava ainda o maldito charuto entre os dentes, quando se dirigiu para o tálamo, onde o  esperava a Isabelinha trêmula e palpitante -- e com o charuto entre os dentes, fumegante e rubro, se deitou ao lado da melindrosa donzela, que não se pôde conter :
- Tenho que lhe pedir um grande favor, meu  amigo.
- Tens que me dar uma ordem, meu amor.
- Abstenha-se de fumar no nosso quarto, sim?
- Por quê? Incomoda-te o meu charuto?
- Não, não me incomoda, mas ... não gosto, não acho bonito ...
O engenheiro não respondeu; teve apenas um ah muito seco, pôs o  havano de lado... e daí  a alguns minutos dormia profundamente .
*

E durante três noites, naquele ninho, não dirigiu a palavra a Isabelinha. Fora dali, de dia, na sala, no gabinete, no jardim, à mesa do almoço ou do jantar, era de uma amabilidade, de uma solicitude sem limites; mas à noite, no leito, esperava que sua mulher se deitasse, deitava-se ao lado dela, fechava os olhos, adormecia, e só despertava no dia seguinte, quando o sol entrava timidamente na alcova.
Na quarta noite a Isabelinha interpelou-o :
- Borges, por que você aqui no quarto não conversa comigo ? ! 
Ele sorriu :
- Ah! Isso ...
E acrescentou com resolução :
- Ouve ; talvez não acredites, mas é a pura verdade : à noite, quando estou deitado, não me é possível conversar sem primeiramente fumar um charuto.
Ela mordeu os beiços e não disse mais nada.
Adormeceram ambos.
*
No dia seguinte, pela manhã, Isabelinha foi ter com a mãe e tudo lhe contou.
- Que estás dizendo,. minha filha? exclamou a baronesa.
E, dando-lhe uma nota de cem mil réis, acrescentou:
-- Aqui tens dinheiro : manda imediatamente comprar uma caixa de charutos para teu marido, e o  mesmo portador que traga duas para teu pai, que há  muito tempo emudeceu.
*
Dona Henriqueta, quando acabou de me contar essa história, pediu-me que a esperasse para acompanhá-la ao ponto dos bondes no largo da Carioca.
Esperei pacientemente que o Chapot Prevost lhe examinasse as pérolas (porque, creiam, os seus dentes são verdadeiras pérolas) e, acabado o exame, tive o prazer de levá-la até o  bonde.
Já ela estava sentada quando de repente :
- Ah !  e eu que me esqueci completamente...
- De quê ? .
- E note-se que não vim à  cidade para outra coisa ! - Meu marido faz anos hoje, e não lhe devo um presente !
- Ainda há tempo.
- Qual !  já é  tarde e  chove tanto...Se eu pudesse arranjar alguma coisa aqui mesmo no largo da Carioca ...
- Pode, por que não? Seu marido não fuma? Está ali a charutaria do Machado, que ...
A minha espirituosa amiga deu um muxoxo e voltou o rosto para sorrir à  vontade.
O bonde partiu.
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O doido

Não  havia dúvida : o pobre Canuto estava  completamente doido.
A princípio foram uns acessos profundos de melancolia , um desejo de andar metido pelos cantos, com a cara para o lado da parede como se o mundo não lhe importasse para mais nada, contemplando as unhas, sorrindo.
Vieram depois os monólogos, os longos monólogos incoerentes, em que ele não dizia coisa com coisa -- até que um dia ficou furioso, quebrou pratos e garrafas, escangalhou um velho relógio de armário, e, descendo ao terreiro da fazenda, espancou um moleque, matou algumas galinhas, e espojou-se no chão, às gargalhadas !
A família fechou-se toda num quarto, aos gritos.  Foram os pretos que subjugaram o doido e conseguiram metê-lo num pardieiro arruinado, que havia sido senzala noutro tempo, e amarrá-lo solidamente a uma viga.
*
Imagine-se a aflição do pobre Miranda, o velho fazendeiro ,com o filho doido - um querido, rapaz inteligentíssimo, que concluíra terceiro ano de direito em São Paulo e estava passando as férias na fazenda do pai.
E a mãe, aquela excelente senhora, carinhosa  como todas as roceiras, ferida assim na fibra mais delicada do seu coração  de mulher simples?
E as duas irmãs, uma das quais, a Maricas ,  era noiva do Meireles, um moço que tinha loja na  vila, quatro léguas distante da fazenda ?
*
A fúria do mísero Canuto pôs tudo em rebuliço.  Depois de algemado o louco, Miranda, com cabeça perdida, mandou que o seu pajem de mais confiança – o  Miudinho, selasse o seu cavalo também de mais confiança – o Furta- moças --  e fosse à  vila, a todo galope, chamar o médico.
Quando este veio, encontrou o doente prostrado entre duas pretas velhas que o benziam, resmungando rezas e fazendo bruxedos e feitiçarias. A grande·crise passara.
O  médico era um verdadeiro médico da roça .
- Homem, seu Miranda, confessou ele, não se trata da minha especialidade; e a primeira vez que na minha clínica aparece um caso de loucura. Eu podia receitar alguma coisa, mas, creia, sem ter muita confiança no que fazia ... Mande quanto antes o seu rapaz para o Rio de Janeiro, e meta-o no hospício ou nalguma casa de saúde. O  acesso pode voltar de um momento para outro, e talvez tenhamos que lamentar alguma desgraça. Com doidos não se brinca !
                                                                 *
À tarde apareceu na fazenda o Meireiles, o lojista, o noivo da Maricas. O Miudinho, de passagem para a  casa do médico, dera-lhe notícia do fato. O  moço mostrava muita solicitude, muito interesse.
Era um rapaz de vinte e cinco anos, baixinho, de feições microscópicas e uns olhos, uns grandes  olhos muito abertos que pareciam ocupar o rosto inteiro. Falava pelos cotovelos, desejoso de se mostrar entendido em todos os assuntos  -- e agora, discutia casos de loucura e aprovava o conselho do médico.
--  Mas quem há de levá-lo  ao Rio de Janeiro ? perguntou o fazendeiro.
--- Eu ! disse logo muito depressa o Meireles. Deixe-o comigo .
O lojista cuidou desde logo de captar a confiança do doido, que tinha momentos perfeitamente lúcidos. Conversaram durante uma hora. Canuto deixou-se convencer de que estava doente e devia dar um passeio à Capital Federal para tratar-se .
A mãe quis opor-se a essa viagem, as irmãs choraram muito e o velho Miranda sentiu-se fraquear  entre aquelas explosões de lágrimas.
Mas era preciso levá-lo  dali. Esse era o único meio de curá-lo , e evitar uma desgraça maior.
*
Dois dias depois, Canuto entrou no trem de ferro em companhia do seu futuro cunhado. Chegaram à  noite na Capital Federal, depois de uma viagem sem incidentes, durante a qual o doido apenas se mostrou taciturno. Ninguém perceberia o seu estado mental, se o Meireles, morto por dar à  língua, não contasse aos outros passageiros a história do pobre moço.
Veio recebê-los  na plataforma da estação um caixeiro do comendador Barbosa, correspondente do velho Miranda, que providenciara pelo correio e pelo telégrafo.
-- Se quiser, disse o caixeiro ao Meireles, daqui mesmo pode seguir para a casa de saúde e lá deixar o doente. Está tudo preparado para recebê-lo.
E depois de indicar  o estabelecimento, cujo diretor se achava prevenido, acrescentou :
-- Basta dizer-lhe que vai da parte do comendador Barbosa.
O Meirelles receou por instantes que Canuto houvesse prestado atenção às palavras do caixeiro, e recusasse acompanhá-lo ; mas o seu olhar de doido era tão inexpressivo, tão morto, que tais receios logo se desfizeram.
Efetivamente, quando o Meirelles o convidou a entrar num carro estacionado na praç;a da República, o bacharel não fez a menor objeção, e deixou-se levar.
*
Chegados que foram à casa de saúde, Canuto desceu do carro e embarafustou resolutamente pelo corredor, antes que o Meireles lhe disse uma palavra.
A primeira pessoa. que o doido encontrou -- numa sala aonde se dirigiu --  foi o próprio diretor do estabelecimento. Cumprimentou-o com muita amabilidade, e disse-lhe :
-- Sr. doutor, trago a vossa senhoria o  maluco de quem lhe falou o sr. comendador Barbosa. E apontou para o Meireles que por seu turno entrava na sala, com os grandes olhos exageradamente abertos.
-- Bem ! já estou prevenido, disse  o diretor.
-- A mania dele, acrescentou Canuto ao ouvido do médico, é dizer que está no seu juízo, e  que o doido sou eu. Aí fica o pobre rapaz aos cuidados de vossa senhoria.
Dizendo isto, disfarçou e saiu para a rua.
-- Bom, meu amigo, disse o diretor, batendo carinhosamente no ombro do Meireles ; vamos para dentro. Vou dar-lhe um quartinho muito bom para descansar .
O Meireles sorriu :
-- Perdão, doutor, eu não preciso descansar.
-- Há de precisar, há de  precisar; chegou de viagem, deve estar fatigado.
-- Não, senhor, tanto que tenciono ir esta noite ao teatro; dormirei no hotel e voltarei para a roça  amanhã, no trem da madrugada. Vim simplesmente entregar.lhe o doido de quem lhe falou o comendador Barbosa.
-- Pois sim, pois sim, deixe lá o  doido ... já sei, já sei ... O senhor fica nesta casa alguns dias e depois volta para a fazenda de seu pai....
-- Ora esta ! pelo que vejo, o doutor está me confundindo com o doido ! ...
-- Não, não estou, creia que não estou ... Venha, venha comigo ....
-- Ora que brincadeira sem graça ! Onde está o Canuto ?
-- Deixe lá o Canuto ! Vamos ... venha para o seu quarto...
-- Já lhe disse, doutor, que está enganado ! Eu não sou o doido ! O doido é o outro !
E cada vez o Meireles arregalava mais aqueles olhos inverossímeis.
Depois de dizer, cheio de calma : - Bom ! é teimoso ... – o  diretor calcou um botão elétrico.
-- Que faz?
--  Vai ver.
Entraram dois enfermeiros, dois latagões  musculosos.
-- Leve este doente para o quarto número 7.
-- Mas...
-- Levem-no ! Se protestar, metam-lhe a camisola de força.
Daí a cinco minutos  o Meireles estava no quarto e com a tal camisola, porque caiu na asneira de protestar.
Quatro dias passou o pobre diabo na casa de saúde, onde chegou a tomar três duchas geladas.
Foi preciso que Canuto aparecesse na fazenda, e que o velho Miranda adivinhasse tudo e telegrafasse ao comendador Barbosa, pedindo-lhe para desmanchar o engano .
*
Canuto está hoje completamente restabelecido e formado. Advoga, mas não serei eu quem lhe confie alguma causa