Os charutos
No último sábado tive a
satisfação de encontrar a minha espirituosa amiga dona Henriqueta na rua dos
Ourives, quando ia entrar em casa do Chappot Prevost, que tem a honra de ser o
seu dentista.
- Ainda bem que o encontro. Suba. Preciso falar-lhe.
Subimos.
O Chapot Prevost estava, como
sempre, ocupado, e a minha espirituosa amiga teve que esperar na elegante
saleta do mais amável dos nossos cirurgiões dentistas.
--Tenho aqui na ponta da língua
uma história para os seus leitores.
- Sim?
- Ah! mas é preciso escrevê-la
com muito cuidado. Foi uma amiga minha que me contou. Não creio que seja
inédita, mas é engraçada.
- Ouçamos.
E dona Henriqueta contou-me a
história que vou reproduzir. Enquanto contava, ria-se a perder, mostrando uns
dentes belíssimos, que não justificavam absolutamente a sua presença na casa do
Chapot Prevost. Não sei porquê, em geral, as senhoras que vão aos dentistas têm
muito bonitos dentes.
Vamos ao conto. Se algum dos
leitores já o conhecer, tanto pior para mim.
*
Foi um dia de verdadeiro júbilo
em casa do barão e da baronesa de Cajapió, nas Laranjeiras, aquele belo domingo
em que o doutor Salles Borba lhes pediu a Isabelinha em casamento.
As três filhas mais velhas
estavam casadas, e muito bem casadas. A Isabelinha era a última, e o doutor
Salles Borba,·engenheiro distinto, muito novo ainda, bem educado, viajado,
bonito, elegante e quase rico, era um partido como não se encontram muitos.
A Isabelinha aceitara o noivo com
entusiasmo; não que o amasse, porque, educada nos mais severos princípios, não
tinha ainda prestado atenção a nenhum homem; reconhecia, entretanto, naquele
belo moço -- tão correto nas maneiras como nas vestimentas -- alguma coisa que
o tornava superior à maior parte dos indivíduos que ela encontrava nas salas
aonde os pais a conduziam com a mal disfarçada. intenção de lhe procurar marido
.
*
O casamento realizou-se com toda
a pompa.
A pedido da baronesa, o doutor
Salles Borba e sua esposa ficaram morando no palacete das Laranjeiras, que
tinha acomodações para abrigar à vontade duas numerosas famílias.
*
Quando o último convidado se
retirou, e os noivos entraram na misteriosa alcova, que docemente lhes sorria
entre sedas azuis e rendas brancas, o doutor Salles Borba tirou da algibeira um
magnífico havano, acendeu-o na vela cor de rosa que ardia num esplêndido
castiçal de ouro, e pôs-se a fumar.
A Isabelinha empalideceu de
despeito. Pois que ! ele, o seu noivo, fumava dentro da alcova nupcial, na
própria noite do casamento ! ...
Aquele charuto inoportuno
pareceu-lhe -- e com razão, digamos -- uma brutalidade inverossímel, uma
grosseria imperdoável.
Na realidade não se compreende
que um cavalheiro da estofa do doutor Salles Borba tão viciado estivesse, Deus
meu ! que não sacrificasse o seu charuto à a mais elementar cortesia.
Acresce que, instruído como era,
naturalmente havia lido a Fisiologia do
casamento, e devia saber que o autor meteu os fumantes no rol dos
“predestinados”. É verdade que isso apenas prova que Balzac... não fumava .
*
Mas não percamos de vista os
nossos noivos.
Os leitores, e principalmente as
leitoras, vão ficar indignados ao saber
que o doutor Salles Borba levava ainda o maldito charuto entre os dentes,
quando se dirigiu para o tálamo, onde o
esperava a Isabelinha trêmula e palpitante -- e com o charuto entre os
dentes, fumegante e rubro, se deitou ao lado da melindrosa donzela, que não se
pôde conter :
- Tenho que lhe pedir um grande
favor, meu amigo.
- Tens que me dar uma ordem, meu
amor.
- Abstenha-se de fumar no nosso
quarto, sim?
- Por quê? Incomoda-te o meu
charuto?
- Não, não me incomoda, mas ...
não gosto, não acho bonito ...
O engenheiro não respondeu; teve
apenas um ah muito seco, pôs o havano de lado... e daí a alguns minutos dormia profundamente .
*
E durante três noites, naquele
ninho, não dirigiu a palavra a Isabelinha. Fora dali, de dia, na sala, no
gabinete, no jardim, à mesa do almoço ou do jantar, era de uma amabilidade, de
uma solicitude sem limites; mas à noite, no leito, esperava que sua mulher se
deitasse, deitava-se ao lado dela, fechava os olhos, adormecia, e só despertava
no dia seguinte, quando o sol entrava timidamente na alcova.
Na quarta noite a Isabelinha
interpelou-o :
- Borges, por que você aqui no
quarto não conversa comigo ? !
Ele sorriu :
- Ah! Isso ...
E acrescentou com resolução :
- Ouve ; talvez não acredites,
mas é a pura verdade : à noite, quando estou deitado, não me é possível
conversar sem primeiramente fumar um charuto.
Ela mordeu os beiços e não disse
mais nada.
Adormeceram ambos.
*
No dia seguinte, pela manhã,
Isabelinha foi ter com a mãe e tudo lhe contou.
- Que estás dizendo,. minha
filha? exclamou a baronesa.
E, dando-lhe uma nota de cem mil
réis, acrescentou:
-- Aqui tens dinheiro : manda
imediatamente comprar uma caixa de charutos para teu marido, e o mesmo portador que traga duas para teu pai,
que há muito tempo emudeceu.
*
Dona Henriqueta, quando acabou de
me contar essa história, pediu-me que a esperasse para acompanhá-la ao ponto
dos bondes no largo da Carioca.
Esperei pacientemente que o
Chapot Prevost lhe examinasse as pérolas (porque, creiam, os seus dentes são
verdadeiras pérolas) e, acabado o exame, tive o prazer de levá-la até o bonde.
Já ela estava sentada quando de
repente :
- Ah ! e eu que me esqueci completamente...
- De quê ? .
- E note-se que não vim à cidade para outra coisa ! - Meu marido faz
anos hoje, e não lhe devo um presente !
- Ainda há tempo.
- Qual ! já é
tarde e chove tanto...Se eu
pudesse arranjar alguma coisa aqui mesmo no largo da Carioca ...
- Pode, por que não? Seu marido
não fuma? Está ali a charutaria do Machado, que ...
A minha espirituosa amiga deu um
muxoxo e voltou o rosto para sorrir à
vontade.
O bonde partiu.
..
O doido
Não havia dúvida : o pobre Canuto estava completamente doido.
A princípio foram uns acessos
profundos de melancolia , um desejo de andar metido pelos cantos, com a cara
para o lado da parede como se o mundo não lhe importasse para mais nada,
contemplando as unhas, sorrindo.
Vieram depois os monólogos, os
longos monólogos incoerentes, em que ele não dizia coisa com coisa -- até que
um dia ficou furioso, quebrou pratos e garrafas, escangalhou um velho relógio
de armário, e, descendo ao terreiro da fazenda, espancou um moleque, matou
algumas galinhas, e espojou-se no chão, às gargalhadas !
A família fechou-se toda num
quarto, aos gritos. Foram os pretos que
subjugaram o doido e conseguiram metê-lo num pardieiro arruinado, que havia
sido senzala noutro tempo, e amarrá-lo solidamente a uma viga.
*
Imagine-se a aflição do pobre
Miranda, o velho fazendeiro ,com o filho doido - um querido, rapaz
inteligentíssimo, que concluíra terceiro ano de direito em São Paulo e estava
passando as férias na fazenda do pai.
E a mãe, aquela excelente
senhora, carinhosa como todas as
roceiras, ferida assim na fibra mais delicada do seu coração de mulher simples?
E as duas irmãs, uma das quais, a
Maricas , era noiva do Meireles, um moço
que tinha loja na vila, quatro léguas
distante da fazenda ?
*
A fúria do mísero Canuto pôs tudo
em rebuliço. Depois de algemado o louco,
Miranda, com cabeça perdida, mandou que o seu pajem de mais confiança – o Miudinho, selasse o seu cavalo também de mais
confiança – o Furta- moças -- e fosse
à vila, a todo galope, chamar o médico.
Quando este veio, encontrou o
doente prostrado entre duas pretas velhas que o benziam, resmungando rezas e
fazendo bruxedos e feitiçarias. A grande·crise passara.
O
médico era um verdadeiro médico da roça .
- Homem, seu Miranda, confessou
ele, não se trata da minha especialidade; e a primeira vez que na minha clínica
aparece um caso de loucura. Eu podia receitar alguma coisa, mas, creia, sem ter
muita confiança no que fazia ... Mande quanto antes o seu rapaz para o Rio de
Janeiro, e meta-o no hospício ou nalguma casa de saúde. O acesso pode voltar de um momento para outro,
e talvez tenhamos que lamentar alguma desgraça. Com doidos não se brinca !
*
À tarde apareceu na fazenda o
Meireiles, o lojista, o noivo da Maricas. O Miudinho, de passagem para a casa do médico, dera-lhe notícia do fato.
O moço mostrava muita solicitude, muito interesse.
Era um rapaz de vinte e cinco
anos, baixinho, de feições microscópicas e uns olhos, uns grandes olhos muito abertos que pareciam ocupar o
rosto inteiro. Falava pelos cotovelos, desejoso de se mostrar entendido em todos
os assuntos -- e agora, discutia casos
de loucura e aprovava o conselho do médico.
-- Mas quem há de levá-lo ao Rio de Janeiro ? perguntou o fazendeiro.
--- Eu ! disse logo muito
depressa o Meireles. Deixe-o comigo .
O lojista cuidou desde logo de
captar a confiança do doido, que tinha momentos perfeitamente lúcidos.
Conversaram durante uma hora. Canuto deixou-se convencer de que estava doente e
devia dar um passeio à Capital Federal para tratar-se .
A mãe quis opor-se a essa viagem,
as irmãs choraram muito e o velho Miranda sentiu-se fraquear entre aquelas explosões de lágrimas.
Mas era preciso levá-lo dali. Esse era o único meio de curá-lo , e
evitar uma desgraça maior.
*
Dois dias depois, Canuto entrou
no trem de ferro em companhia do seu futuro cunhado. Chegaram à noite na Capital Federal, depois de uma
viagem sem incidentes, durante a qual o doido apenas se mostrou taciturno.
Ninguém perceberia o seu estado mental, se o Meireles, morto por dar à língua, não contasse aos outros passageiros a
história do pobre moço.
Veio recebê-los na plataforma da estação um caixeiro do
comendador Barbosa, correspondente do velho Miranda, que providenciara pelo
correio e pelo telégrafo.
-- Se quiser, disse o caixeiro ao
Meireles, daqui mesmo pode seguir para a casa de saúde e lá deixar o doente.
Está tudo preparado para recebê-lo.
E depois de indicar o estabelecimento, cujo diretor se achava
prevenido, acrescentou :
-- Basta dizer-lhe que vai da
parte do comendador Barbosa.
O Meirelles receou por instantes
que Canuto houvesse prestado atenção às palavras do caixeiro, e recusasse
acompanhá-lo ; mas o seu olhar de doido era tão inexpressivo, tão morto, que
tais receios logo se desfizeram.
Efetivamente, quando o Meirelles
o convidou a entrar num carro estacionado na praç;a da República, o bacharel
não fez a menor objeção, e deixou-se levar.
*
Chegados que foram à casa de
saúde, Canuto desceu do carro e embarafustou resolutamente pelo corredor, antes
que o Meireles lhe disse uma palavra.
A primeira pessoa. que o doido
encontrou -- numa sala aonde se dirigiu --
foi o próprio diretor do estabelecimento. Cumprimentou-o com muita
amabilidade, e disse-lhe :
-- Sr. doutor, trago a vossa
senhoria o maluco de quem lhe falou o
sr. comendador Barbosa. E apontou para o Meireles que por seu turno entrava na
sala, com os grandes olhos exageradamente abertos.
-- Bem ! já estou prevenido,
disse o diretor.
-- A mania dele, acrescentou
Canuto ao ouvido do médico, é dizer que está no seu juízo, e que o doido sou eu. Aí fica o pobre rapaz aos
cuidados de vossa senhoria.
Dizendo isto, disfarçou e saiu
para a rua.
-- Bom, meu amigo, disse o
diretor, batendo carinhosamente no ombro do Meireles ; vamos para dentro. Vou
dar-lhe um quartinho muito bom para descansar .
O Meireles sorriu :
-- Perdão, doutor, eu não preciso
descansar.
-- Há de precisar, há de precisar; chegou de viagem, deve estar
fatigado.
-- Não, senhor, tanto que
tenciono ir esta noite ao teatro; dormirei no hotel e voltarei para a roça amanhã, no trem da madrugada. Vim simplesmente
entregar.lhe o doido de quem lhe falou o comendador Barbosa.
-- Pois sim, pois sim, deixe lá
o doido ... já sei, já sei ... O senhor
fica nesta casa alguns dias e depois volta para a fazenda de seu pai....
-- Ora esta ! pelo que vejo, o
doutor está me confundindo com o doido ! ...
-- Não, não estou, creia que não
estou ... Venha, venha comigo ....
-- Ora que brincadeira sem graça
! Onde está o Canuto ?
-- Deixe lá o Canuto ! Vamos ...
venha para o seu quarto...
-- Já lhe disse, doutor, que está
enganado ! Eu não sou o doido ! O doido é o outro !
E cada vez o Meireles arregalava
mais aqueles olhos inverossímeis.
Depois de dizer, cheio de calma :
- Bom ! é teimoso ... – o diretor calcou
um botão elétrico.
-- Que faz?
-- Vai ver.
Entraram dois enfermeiros, dois
latagões musculosos.
-- Leve este doente para o quarto
número 7.
-- Mas...
-- Levem-no ! Se protestar,
metam-lhe a camisola de força.
Daí a cinco minutos o Meireles estava no quarto e com a tal
camisola, porque caiu na asneira de protestar.
Quatro dias passou o pobre diabo
na casa de saúde, onde chegou a tomar três duchas geladas.
Foi preciso que Canuto aparecesse
na fazenda, e que o velho Miranda adivinhasse tudo e telegrafasse ao comendador
Barbosa, pedindo-lhe para desmanchar o engano .
*
Canuto está hoje completamente restabelecido e formado. Advoga, mas não
serei eu quem lhe confie alguma causa
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