com fito e mote registrar a natureza do Rio de Janeiro como autêntica "cidade literária" -- ao mesmo tempo referenciar e reverenciar a cidade em seus 450 anos de existência.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A mulher brasileira é escravocrata ?, de Aluisio Azevedo

A mulher brasileira é escravocrata ?

-- Muito !
Ninguém o é tanto, nem tão cegamente.
E, como poderia deixar de ser assim, se a mulher brasileira caminha com sessenta anos de atraso ? Se, enquanto navegamos em 1884, armados de escapelos, munidos de ciência, medindo os nossos gostos, as nossas simpatias pela bitola de uma educação positiva e moderna;  ela a mulher, a que devia ir adiante com as criancinhas pela mão, a explicar o que é  ar, o azul do céu, a classificar as flores e as folhas que os filhos fossem arrancando no caminho para brincar, ela, que devia saber tudo, como educadora, como mestra; ela, coitada, arrasta-se ainda nas brumas do romantismo , crê  no diabo, tem mau agouro com o arrulhar dos pombos, empalidece defronte de um pouco de azeite entornado, e em vez de responder pelos seus atos, lança tudo à conta da “ Fatalidade”.
Antes de cometer qualquer coisa, não procura estudar e dirigir as circunstâncias que tenham porventura de produzir a grande calamidade de sua vida; não ! dizem simplesmente : -- Será o que Deus quiser !
E deixam correr o marfim.
Depois do caso verificado; quando todas conseqüências começam de lhe cair sobre a bela cabecinha pecadora, então elas voltam os formosos olhos para o céu, suspiram e dizem :
-- Ora ! É porque mesmo já tinha de suceder ! Fez-se a vontade de Deus !

Todavia, esta irresponsabilidade é de 1820 e não de nossos dias. A mulher de nossos dias é a única responsável pelos seus atos, é a única que dirige a sua existência, a que defende a sua virtude e a que determina do destino bom ou mau da geração que a secunda.
Os homens serão obra sua, a sociedade será o reflexo do que elas pensaram, do que elas sentiram, do muito que amaram e que sofreram.
Pois bem, a mulher enquanto não chega a compreender essa verdade há de fatalmente escravocrata !
Há de ser escravocrata, porque é supersticiosa, romântica, irresponsável de seus atos e ignorante dos seus deveres mais comezinhos.
Conheci na província muita senhora honesta quanto às suas atribuições de esposa, muito boas e generosas, quanto ao seu modo de praticar com os parentes e amigos, mas verdadeiramente perversas quanto aos escravos.
É que faziam uma idéia falsa do que fossem essas criaturas negras, que um acaso terrível lhes atirara aos pés, como feras domesticadas. Metiam-lhes o chicote naturalmente, como se metendo o chicote cumprissem um destino decretado pelos céus.
-- Quando Deus os fez negros não foi por boa coisa !...
É uma praga que a senhora do norte repete a todo o instante.

Uma senhora conheci, muito velha, muito devota, que saía todas as manhãs para a igreja, deixando um escravo no castigo com ordem para não o parar enquanto ela não voltasse. Outra me consta que mandou arrancar os dentes de uma escrava porque o marido uma ocasião tivera a imprudência de dizer que a infeliz tinha uns dentes admiráveis. Outra, apesar de muito boa e honesta mulher, sei que à noite, saudosa do marido e caindo de tédio, chamava para junto de sua rede uma escrava e exigia que esta contasse histórias engraçadas : quando a história não tinha a graça desejada, metia-lhe o vergalho.Imagine-se os apuros da pobre escrava !
Mas em minha própria família, como em toda família maranhense, constituída nos últimos oitenta anos, as cenas de rigor com os negros são tão comuns que chegam a entrar nos hábitos da existência.
Lembro-me ainda ter visto, em pequeno, e quantas vezes ! dois ou três escravos na surra. Era vergonhoso : castigavam-se mutuamente, iam passando os bolos e as chicotadas como se estivessem a fazer um jogo, uma patuscada para se divertirem.

Felizmente tudo isso hoje está modificado ! Ainda me recordo, porém, de uma preta velha, talvez de sessenta anos nessa época, avó, boa de coração e pura de costumes como poucas mulheres tenho visto em todas as classes sociais. Era uma criatura inocente, da roça, quase que não sabia falar e andava sempre triste, consumida pelas saudades de seus filhos e de seus netos. Apesar da idade, dispunha da força de um homem e tinha o corpo em pleno vigor.
A senhora dessa avó, como não lhe podia arrancar o serviço de roça, visto estar na cidade, dava-lhe um tabuleiro cheio de frutas e ordenava à boa mulher que as fosse vender pelas ruas. A preta saía de manhã e voltava à noite, depois de percorrer toda a pequena cidade de S. Luis do Maranhão.
Mas, infeliz dela se não tivesse  conseguido vender todas as frutas, porque a senhora, uma senhora de muito boa sociedade e tida na província como um dos melhores corações, a senhora chamava um escravo dos mais possantes e ordenava-lhe que aplicasse meio grosa de palmatoadas à pobre velha.
Foi tão grande a impressão que recebi nesse momento que ainda tenho defronte dos olhos o vulto venerando da escrava estendendo ora uma ora a outra mão para receber a pancada. Vejo ainda a sua cabeça vergada, um pouco oprimida pelo hábito de carregar o tabuleiro, o cabelo encarapinhado e branco. Vejo correrem-lhe dos olhos as lágrimas silenciosas dos mártires e ouço-lhe os gemidos lentos, arrastados, como deviam ser os de Cristo ao galgar o rastro do Calvário.
Já não existes, pobre criatura de cabelos brancos, pobre mãe de mães, vieste e saíste deste mundo amarrada sempre ao cativeiro !
Entretanto, aquelas mãos talhadas para as bênçãos nunca se ergueram para amaldiçoar os seus verdugos !
Pobre santa !
                                                                          

















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